28 de dezembro de 2017

RETROSPECTIVA: OS MELHORES FILMES DE 2017

 

O que houve de novo (ou de melhor) no cinema, em 2017? Não existe uma resposta categórica para isso. As afirmações para melhores filmes são máximas individuais. Não são exclamações, são reticências. Ou vírgulas, melhor. O cinema é isso, não é mesmo? Um despertar de inquietações – algumas delas, provém da razão; tantas outras, da emoção.

Aqui, eu listei alguns dos filmes que me acertaram em cheio em 2017. Espero que a vocês também.


Melhores Filmes Lançados em 2017:



  1. mãe! (mother!. EUA, 2017)

     
    Cinema não é só aquilo que se diz. Não é só o que é mostrado em tela. A arte não é evidência. É subjetiva, metafórica, aflitiva. A nova obra-prima de Aronofsky, mãe!, não fala sobre milhares de desconhecidos entrando numa casa com o aval de um homem controlador. Não. Ele utiliza essa metáfora para mergulharmos numa trama paranoica, antirreligião e, acima de tudo, ambientalista. Afinal, um título mais claro que mãe! seria possível apenas se ele viesse acompanhado por … natureza. É sobre ela que Aronofsky se debruça, julgando nosso caráter como civilização – já que somos forasteiros, que se sentem em casa, sem ligar se interferimos ou não no design imaginado para aquela casa, para aquele mundo. Assim, a figura de uma mulher para representar fisicamente a natureza é uma das melhores decisões possíveis que o diretor podia tomar, já que consegue evidenciar ainda mais a relação entre domínio/submissão e a misoginia presente nas mais diversas camadas sociais. Crítica completa.

  2. Dawson City: Frozen Time (Idem. EUA, 2016) 



    Há momentos raríssimos em que a fala é necessária em Dawson City. E um deles é logo no começo: "essa história é incrível". Era ali que o registro da voz era imprescindível para categorizar o que nós veríamos. E o assombro faz jus. DW é um filme que faz pulsar cada imagem cinematográfica como se fosse a primeira vez que assistíssemos a um filme e conhecêssemos a história do cinema.

  3. No Intenso Agora (Idem. Brasil, 2017) 

     
    João Moreira Salles consegue nos levar para uma viagem que não apenas reflete sobre o passado, como também o nosso presente e o que podemos esperar do futuro.

  4. Marjorie Prime (Idem. EUA, 2017)


    Se você pudesse enclausurar uma única memória sobre uma relação, qual seria? De que época? Quem seria? Há imagens que gostamos de individualizá-las, acredito. Uma foto ou uma recordação que guardamos só para nós. Não divulgamos aos quatro cantos cibernéticos, tampouco fazemos questão de notá-la todos os dias. É seguro o suficiente saber que essa memória só é nossa. Está lá e podemos vê-la, de vez em quando. Como se fosse a primeira vez. O filme de Michael Almereyda (do excelente O Experimento de Milgram), Marjorie Prime, traça uma intimidade que raros filmes conseguem ao suavizar a perda sem que o luto seja desafiador. São quatro personagens que dividem as memórias conosco: Jon, Tess, Walter e Marjorie. O fio da narrativa nos sugere um serviço que oferece recriações holográficas de parentes falecidos, mas a mensagem acumula o mais importante: o que realmente nos faz humanos. Crítica completa.

  5. Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri. Inglaterra/EUA, 2017)


    Nesta tragicômica cidade amaldiçoada em Missouri, Martin McDonagh cria personagens que transitam continuamente entre a estupidez, o cinismo, a empatia e a vulnerabilidade. Humanos, acima de tudo. As resoluções de personas como Dixon, Willoughby, James, Charlie e tantos outros, demonstram que não é uma realidade fácil; pelo contrário, o tormento daquelas pessoas é quase imutável. Dolorosíssimo, Three Billboards é mais uma obra pragmática sobre uma sociedade perdida, onde as jornadas podem ser distantes, mas as conclusões se assemelham.

  6. Colossal (Idem. Canadá/Espanha/EUA/Coréia do Sul, 2016)


    A sensação depois de Colossal é a de ficar paralisado, como se um robô gigante lhe arrastasse por 200 metros, com você a mercê, nas mãos dele. Nacho Vigalondo cria uma obra que manifesta cada particularidade de sua carreira: a adoração pela ficção científica, pelo macabro, além do amor e a sensibilidade de sua obra, complementando-se com a insanidade de seus personagens. Mas, acima de tudo, manifesta a si próprio. Em uma batalha que sugere ser bem pessoal (travada na mente do diretor), entre id e ego, Jason Sudeikis (na atuação de sua carreira) leva a pior e sucumbe. É uma forma de Vigalondo de se livrar do que de pior possui em algum lugar de sua mente. O cinema na forma mais intimista possível.

  7. Brawl in Cell Block 99 (Idem. EUA, 2017)


    Muito do apego cinematográfico de Scorsese girava em torno da moral dentro de uma vida de crime brutal. Como se manter íntegro dentro de um lugar que só respira o caos e a sobrevivência a qualquer custo? Vince Vaughn ilustra essa personalidade como nenhum outro conseguiu em 2017. Alguém violento, que beira ao insano, mas jamais perde o controle sobre suas ações.

  8. The Double Lover (L'Amant double. França/Bélgica, 2017)


    Ozon ridiculariza nossa noção de observação, inquieta nossa perspectiva e consegue criar um ritual de manifestação de desejos e repressões calculadíssimo. Ante nossos espelhos, a vaidade é só uma das camadas; o maior reflexo é sempre o interno. O que vamos enxergar quando nos observamos por completo? Ou como nos associamos um ao outro? É como se Verhoeven encontrasse Aronofsky.

  9. Thelma (Idem. Noruega/França/Dinamarca/Suécia, 2017) 


    Em uma das cenas mais lindas do filme, Thelma experimenta o prazer numa alucinação despertada não pela droga, mas pela manifestação involuntária de tesão. A serpente que adentra seu corpo, como se o pecado estivesse se estabelecendo ali, a afasta do que sempre a reprimiu, a religiosidade. A descoberta de sua verdadeira identidade proposta pelo cineasta vincula o sobrenatural, sim, mas os elementos de horror da obra são cúmplices da natureza humana. Jamais ilógicos. Se Carrie, do De Palma, fosse feito nos dias atuais, suspeito que ele seria algo similar a Thelma.

  10. Let It Fall: Los Angeles 1982 – 1992 (Idem. EUA, 2017)


    Existem múltiplas tentativas de reconhecer contextos. Alguns dos melhores trabalhos documentais percorrem exatamente este caminho. OJ Made In America não era apenas uma cinebiografia poderosa sobre uma figura tridimensional. Era um retrato sobre como o racismo fez com que a conclusão fosse aquela. Na história, a coadjuvância se mostra poderosa. Para compreender momentos, é necessário olhar sempre por uma esfera maior. Assim como LA 92, Let It Fall imerge na compreensão sobre os riots americanos e, principalmente, o chocante caso filmado de Rodney King. Mas é ainda mais profundo.
Outros filmes que merecem menção (na ordem):

  1. Forma da Água, A (The Shape of Water. EUA, 2017)
  2. Corra! (Get Out. EUA, 2017)
  3. Bingo – O Rei das Manhãs (Idem. Brasil, 2017)
  4. Super Dark Times (Idem. EUA, 2017)
  5. Cura, A (A Cure for Wellsess. Alemanha/EUA, 2016)
  6. Psiconautas (Psiconautas, los niños olvidados. Espanha, 2015)
  7. Tomcat (Kater. Austria, 2016)
  8. Band Aid (Idem. EUA, 2017)
  9. Era o Hotel Cambridge (Idem. Brasil, 2016)
  10. LA 92 (Idem. EUA, 2017)
  11. Filme da Minha Vida, O (Idem. Brasil, 2017) / Pendular (Idem. Brasil, 2017)
  12. Além das Palavras (A Quiet Passion. Inglaterra/Bélgica, 2016)
  13. Bom Comportamento (Good Time. EUA, 2017)
  14. Lady Macbeth (Idem. Inglaterra, 2016)
  15. Todas Essas Noites Sem Dormir (Wszystkie nieprzespane noce. Polônia, 2016) 


Melhores Filmes Lançados no Brasil em 2017:

  1. mãe! (mother!. EUA, 2017)
  2. No Intenso Agora (Idem. Brasil, 2017)
  3. Martírio (Idem. Brasil, 2016)
  4. Marjorie Prime (Idem. EUA, 2017)
  5. Criada, A (Ah-ga-ssi. Coréia do Sul, 2016)
  6. Christine – Uma História Verdadeira (Christine. EUA, 2017)
  7. Thelma (Idem. Noruega/França/Dinamarca/Suécia, 2017)
  8. Quase 18 (The Edge of Seventeen. EUA, 2016)
  9. Brilho Eterno (Always Shine. EUA, 2016)
  10. Colossal (Idem. Canadá/Espanha/EUA/Coréia do Sul, 2016)

    Lista Completa: https://letterboxd.com/clickfilmes/list/os-melhores-filmes-lancados-no-brasil-em/


    OUTRAS LISTAS: 
     
     
    Melhores Filmes Nacionais Lançados em 2017:



    Melhores Documentários Lançados em 2017:



    Melhores Terrores Lançados em 2017:


     

    DIÁRIO COMPLETO DE 2017, NO LETTERBOXD, COM OS 688 FILMES QUE ASSISTI NO ANO:

    https://letterboxd.com/clickfilmes/films/diary/


    Aproveitem as festas. Até o ano que vem.

4 de agosto de 2017

Em Ritmo de Fuga

Baby Driver, Inglaterra/EUA, 2017. Direção: Edgar Wright. Roteiro: Edgar Wright. Elenco: Ansel Elgort, Jon Hamm, Jamie Foxx, Lily James, Eiza González, Jon Bernthal e Kevin Spacey. Duração: 1h52min.

A maneira como reproduzimos contextos no cinema é fascinante. Quando precisávamos criar empatia com personagens violentos, por exemplo, tratávamos de humanizá-los o mínimo que fosse para que não precisássemos acompanhar um canalha completo em sua missão nos submundos do crime. Scarface é um exemplo claro e, inclusive, citado em cursos de cinema, pois atribui algum tipo de caráter ao protagonista na primeira cena do filme, quando ele se sente acuado e fala sobre a irmã. O que você vê depois, torna-se uma ilusão narrativa, porque você passa a achar que só você, o espectador, sabe quem é o verdadeiro Tony Montana. Aquele sujeito que gosta da irmã. Ele não é completamente desumano. Há um coração. Esse é o princípio da empatia no cinema. Quando pegávamos os assaltantes sendo caracterizados como mocinhos, a exemplo de Onze Homens e um Segredo, ainda assim tínhamos uma questão imprescindível para que torcêssemos para os anti-heróis: eles roubavam cassinos, que supostamente eram gerenciados por aproveitadores e criminosos, portanto eles só estavam roubando de quem rouba.

Essa é uma das falas do personagem de Jamie Foxx, em Baby Driver (Em Ritmo de Fuga), que atiça a curiosidade para o contexto do filme de Edgar Wright. "Nós viemos pegar o que é nosso. Ele nos roubaram. E agora queremos isso de volta", Bats expõe. O pensamento de que estamos a bordo de um veículo que transgride leis, foge de autoridades, mas assalta o próprio governo, passa a nos sugerir um novo contexto para nossa empatia, onde o transgressor passa a ter nosso carinho pois também gostaríamos de estar provocando o governo em atos rebeldes e pegando um dinheiro que é desviado para outros fins que não a nossa assistência social. Assim, Wright não só brinca com esse caráter paradoxal, como também se diverte ao introduzir esses personagens no mundo de Baby Driver – Buddy, Darling, Baby, Bats, Doc e Griff.

Mostrando que também é um diretor talentosíssimo, o inglês desenvolve o plano sequência inicial com uma habilidade invejável, ao nos apresentar o nome do personagem pela primeira vez – e perceba, desta forma, como o diretor vai e volta do prédio onde Baby está, como se estivéssemos na perspectiva de um volante. Mais belo, é como Baby é apresentado para nós, pouco a pouco, sem que as nuances sejam explicadas didaticamente. Ao nos apresentar a origem de sua história com carros, por exemplo, avaliamos que o seu perfeccionismo por música e pela técnica provém da morte da mãe ao volante de um carro, enquanto ele escutava música para não ouvir as brigas dos pais. Desde então, Baby fugia. Não ligando para a morte, já que a adrenalina vinha de estar sempre perto dela e, consequentemente, perto da mãe, o protagonista se esconde atrás de dance moves e piruetas para nunca se sentir parado. E os únicos momentos que Baby confraterniza a música com alguém é para dois dos personagens mais importantes do longa: a primeira vez, Buddy (Jon Hamm, fabuloso) pega um dos fones da orelha dele para participar do momento que ele vive; no outro, Baby dá para Debora um de seus fones para ela confraternizar com ele aquele instante.


Assim, quando se torna um coadjuvante da história, um carona, Baby para de fugir. Ele entrega o volante para Debora e se rende.Uma forma de deixar claro que Wright não é um diretor que pretende apenas ser descolado. Ele é alguém que sabe exatamente o que faz. 

1 de agosto de 2017

Dunkirk

Idem, Inglaterra/Holanda/França/EUA, 2017. Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan. Elenco: Aneurin Barnard, James D'Arcy, Harry Styles, Fionn Whitehead, Barry Keoghan, Mark Rylance, Jack Lowden, Cillian Murphy, Tom Hardy e Kenneth Branagh. Duração: 1h46min.

"Christopher Nolan é um cineasta que procura a catarse". A expressão não é minha, é do colega Márcio Sallem. Este pensamento é um espelho de uma filmografia mais racional do que emocional de Nolan, onde, na ânsia de sempre provocar grandes momentos cinematográficos, o diretor "agride" o espectador visualmente nos inserindo, geralmente, nas suas tramas. Transportando-nos para seus mundos, uma perseguição de Leonard, em Amnésia, para a curiosidade insana de O Grande Truque são completamente destoantes, portanto, pois são mundos divergentes. A Origem, mais ainda.

É quando Nolan pretende criar algo mais emocional em seus filmes que ele encontra problemas. Interestelar é o maior exemplo, ao experimentarmos um completo afastamento de calor humano por tratar o longa-metragem quase como um documento científico e, vez ou outra, criando clichês melodramáticos (que não funcionam) na espera de criar um lembrete para o espectador de que ele está assistindo a algo envolvente e sentimental. Esse é um pouco do erro de Dunkirk, quando o inglês insiste em diálogos pavorosos quanto o isolamento daquelas pessoas nas areias de Dunkirk:

– Dá para vê-la daqui!
– O quê?
– A nossa casa!

Quando a carga emocional de Batman – O Cavaleiro das Trevas atingia um ápice, por exemplo, jamais era pelo teor melodramático com que Nolan retratava Gotham. Era pela racionalidade e aleatoriedade daquele mundo, onde vivíamos tempo o bastante com seus personagens, até o momento em que eles não precisavam dizer mais nada. E é exatamente nesta aleatoriedade da vida, na qual os soldados caminham por uma rua deserta antes de virarem alvos ou num torpedo vindo em direção a um navio, que o diretor demonstra que administrar o caos através de sua lente é a sua maior virtude como cineasta. Se Mel Gibson preferia tratar o choque da guerra como uma vocação no seu prazer pela carne, Nolan é um observador paciente e aleatório. Para o inglês, não existem inimigos numa guerra. Apenas sobreviventes. Analise, por exemplo, como nenhum alemão é visto durante o filme, apenas sombras e o cano de uma arma.

Como saber quem é o inimigo? Nolan chega a demonstrar uma morte ocasional de um garoto num barco, evidenciando sequelas da guerra de uma maneira bem casual. Essa observação garante também uma cena icônica de Dunkirk, onde os soldados correm cada um para um lado, sem organização e acuados, quando ouvem os sons de aviões inimigos chegando. Não existe mais coordenação e alinhamento. Existem pessoas tentando escapar. Da forma que conseguirem. Desta forma, Nolan consegue nos familiarizar com um ambiente de guerra diferente de outros, por não se tratar de lados, mas de resistência. Outra cena fatídica de Dunkirk é na areia, quando o soldado apenas se protege do barulho das explosões, enquanto os colegas são mortos, um a um, por disparos de canhão.

E é necessário destacar o trabalho de som genial que é feito pela equipe de Dunkirk. O exemplo mais gritante é a primeira cena do longa-metragem, onde podemos ouvir o cuidado dos técnicos em registrar cada emissão – o passo, os papeis tocando nos casacos dos soldados, uma janela sendo aberta – até chegar nos tiros rasantes que causam desorientação completa no espectador e nos personagens. Quando um deles consegue correr em direção a praia, os barulhos das balas são sutilmente trocadas pela batida de coração do personagem, como se ele estivesse conseguindo fugir daquela zona de guerra.

É exatamente nas poucas palavras que Nolan domina seu filme. Como já havia mostrado em A Origem, que também foi editado por Lee Smith, o cineasta consegue construir pontes eficientes entre vários paralelos. Assim, um tentando sair de uma janela de um avião enquanto o outro tenta entrar em outra ambientação ou diferentes situações envolvendo inundação nos demonstra a habilidade de Smith em capturar as intenções de Nolan. E minha transição favorita talvez seja aquela em que um personagem diz que não consegue enxergar e somos transportados para um aviador com pouca visibilidade no voo.


Following, Amnésia, Insônia, O Grande Truque, Batman Begins, Batman: O Cavaleiro das Trevas, Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, A Origem, Interestelar e, agora, Dunkirk. Com mais acertos do que erros, Nolan vai se tornando um dos cineastas mais relevantes da atualidade.  

26 de fevereiro de 2017

Moonlight: Sob a Luz do Luar

Moonlight, EUA, 2016. Direção: Barry Jenkins. Roteiro: Barry Jenkins. Elenco: Alex Hibbert, Mahershala Ali, Naomie Harris, Ashton Sanders, Jharell Jerome, Janelle Monáe, Jaden Piner, Trevante Rhodes e André Holland. Duração: 1h51min.

Há uma certa semelhança entre dois filmes indicados ao Oscar esse ano, Manchester À Beira Mar e Moonlight. Ambos, afinal, tratam sobre a necessidade de continuar vivendo e superar os traumas e adversidades que aparecem no caminho. Enquanto um lida com a morte, no entanto, outro acaba lidando com algo muito mais assustador – ao menos, para aqueles personagens –: a vida. Correndo das pessoas que o ameaçam e gritam obscenidades para feri-lo, Chiron surge numa emblemática cena, onde, após se isolar literalmente num quarto sem janelas, observa a imponência de Juan, que será sua principal referência paterna, arrancar uma das tábuas que servia para tapar a luz do sol e sugerir: “Venha. Não deve ser pior aqui fora.”

Nesta sensibilidade com que lida com a sua temática sobre autoaceitação e liberdade sexual, a direção de Barry Jenkins é eficiente ao ilustrar as situações que os personagens vivem – seja num ligeiro plano detalhe de uma arma, para invocar a sensação de perseguição, quanto numa câmera inquieta para retratar os alucinógenos agindo na cabeça da mãe de Little. Jenkins é seguro em cada frame, como aquele em que acompanha (num travelling circular) a chegada de Juan no seu ponto de drogas, ou nas cenas em que evidencia o isolamento de Chiron. Observe, por exemplo, o momento em que o garoto se afasta dos colegas jogando futebol ou a fantástica cena em que os colegas são mostrados vivendo suas vidas normalmente enquanto ele se sente acuado no fundo do plano.

Essa segurança, igualmente, também é sublinhada na montagem de Joi McMillon e Nat Sanders, que pontuam brilhantemente cada fase da vida de Chiron e o que o faz crescer: se num primeiro momento, o aprendizado com Juan sobre como ele precisa ser ele mesmo no mundo faz com que ele adquira personalidade; na segunda fase, no colégio, ele aprende a revidar. Na última, quando adulto, ele garante seu respeito. Não precisa mais correr. Ele continua de pé, não importando a quantidade de socos que leva/levou. É curioso, idem, que o que traz o choro de Chiron de volta seja exatamente seu passado – representado pela conversa com sua mãe e pelo telefonema que recebe de Kevin.

Se Chiron representa a dureza dessa vida reprimida, com suas expressões fechadas, poucas palavras e sem sorrisos, seu melhor amigo, Kevin, é exatamente seu oposto: alguém que aprendeu a se adequar na sociedade, mesmo que não seja necessariamente ele mesmo. Kevin casa, tem um casamento fracassado, ganha uma criança para cuidar, bate no amigo para ganhar status no colégio, é sempre sorridente, mas inveja o caráter de Chiron. Ama-o com certa devoção. Já Chiro, interpretado por três atores identicamente impressionantes na composição do personagem, como se realmente víssemos o amadurecimento dele em tempo real, aprende a ter um equilíbrio em sua vida, deixando-se apenas vulnerável pela sua paixão por Kevin. E se Naomie Harris e Janelle Monáe são marcantes nas poucas cenas que possuem, Marhershala Ali tem a conversa mais inesquecível e sensível do filme ao encorajar Chiron a ser ele mesmo, não deixar que as pessoas decidam por ele e explicar como a sociedade tentará fazer com que ele sinta vergonha de ser quem ele é.

Sensibilidade, aliás, é a palavra que define um filme tão forte quanto Moonlight. Ao observarmos o mesmo garoto sob a luz da lua, encarando-nos com intensidade, sabemos que ele finalmente encontrou o que buscava: amor próprio, não se importando com os julgamentos.

25 de fevereiro de 2017

Manchester À Beira Mar

Manchester by the Sea, EUA, 2016. Direção: Kenneth Lonergan. Roteiro: Kenneth Lonergan. Elenco: Casey Affleck, Lucas Hedges, Michelle Williams, Gretchen Mol, Tate Donavan, Kara Hayward, Kyle Chandler. Duração: 2h16min. 

Há duas cenas que definem bem o espírito de Lee Chandler durante sua busca por redenção: após passar por novas situações constrangedoras, ele se embebeda no bar até a noite lhe permitir arrumar alguma confusão. Na primeira, depois de passar de um trabalho ao outro, vivendo com sua contumaz apatia, ele rejeita a aproximação de uma mulher para continuar isolado em seu mundo até que decide brigar com os homens de terno em sua frente que o “encaravam”. Na segunda, Lee está de volta à sua terra natal, onde encontra a mãe de seus filhos, o que faz com que o passado recaia sobre ele como uma tormenta. A única maneira dele encontrar a solução para acabar o seu sofrimento é mais dor.

E quando o filme de Kenneth Lonergan entende que Lee Chandler é seu verdadeiro horizonte e que suas atenções precisam sempre estar voltadas a ele, a obra consegue desenvolver um drama comovente sobre o quão doloroso pode ser continuar vivendo, mesmo que isso já não faça mais diferença quanto antes. Assim, Casey Affleck tem a atuação de sua carreira, ao se prender a um homem que representa a sua maior característica como ator: a apatia diante do caos. Se a luz que o acompanha quando está com seus filhos e a mulher em momentos é trocada pela amargura como passa a viver depois da tragédia, as nuances são sempre bem evidenciadas por Affleck – da empatia ao desprezo. Seu ponto de virada é exatamente na Delegacia, onde, ao perceber, que precisaria continuar vivendo como se nada tivesse acontecido, ele tenta dar um fim a sua própria existência.

O grande problema de Manchester, no entanto, gira em torno da trilha sonora de Lesley Barber, a qual sempre tenta pontuar cada momento mais sensível com composições que gritam tragédia (a pior delas sendo no funeral), e também na montagem de Jennifer Lame que nunca garante as idas e vindas do passado de maneira orgânica. E observe, por exemplo, que ela sempre tem que lembrar que aqueles flashbacks sobre momentos que Lee e Joe passaram juntos estava na cabeça dele, durante uma leitura de um testamento ou no reconhecimento de um cadáver.

Lonergan, igualmente, pretere a jornada de Lee em muitos momentos apenas para inchar a narrativa com mais cenas com o jovem Patrick, que também passa por novidades na sua vida. Mas quase nunca relativas ao pai. Fora a cena do freezer, o rapaz está mais preocupado com sua banda ou em transar com uma de suas amigas, numa tentativa nada sutil de Lonergan em afirmar que a vida continua para outras pessoas.

Assim, é na última conversa entre a personagem de Michelle Williams e Casey Affleck que o diretor nos oferece essa prova sobre como cada um lida com seu passado. “Eu quero que você seja feliz”, diz um Lee decidido a ser completamente miserável em sua vida.

24 de fevereiro de 2017

Um Limite Entre Nós

Fences, EUA, 2016. Direção: Denzel Washington. Roteiro: August Wilson, baseado na peça de sua própria autoria. Elenco: Denzel Washington, Viola Davis, Stephen Henderson, Jovan Adepo, Russell Hornsby, Mykelti Williamson. Duração: 2h19min.

Proporcional as suas analogias, Fences carrega certa compatibilidade com Beisebol. Os jogadores são trocados por atores que revezam seus papeis na defesa e no ataque continuamente, fazendo com que as consequências de suas ações ajam naturalmente no desenrolar da narrativa. Isso nem sempre dá certo, claro, como nos mostra uma das cenas mais significativas do longa-metragem de Denzel Washington: a confissão de Troy sobre seu caso extraconjugal. Trazido à tona de maneira pobre e forçada, a cena apenas serve para ilustrar um choque entre o casal sem que isso seja antecipado em nenhum outro momento. Na sutileza, no entanto, Denzel consegue resguardar a segurança de sua trama. Quando Gabe corre pelas ruas delirando sobre o juízo final, uma placa de Pare se destaca. O segredo de Fences, afinal, reside na sua simplicidade.

Percebendo isso, Denzel deixa a sua câmera agindo constantemente em harmonia com os monólogos e discussões de seus personagens. Aproveitando seu cenário teatral, ele os coloca em palanques para a exposição de seus pensamentos, fazendo com que o diálogo seja sempre a principal ferramenta da narrativa. A imagem pouco influencia. A condução é calculada, próxima, quase íntima. Denzel entende o que precisa fazer para solidificar sua decisão de filmar quase que uma peça teatral sem interlúdios. De tal modo, é comum que enquanto uma discussão seja travada acerca de dinheiro, uma personagem fique andando para lá e para cá ao fundo, fazendo com que essa consonância fique mais nítida.

Troy Maxson, o personagem de Denzel, precisa ser o centro da atenção. Seu rancor em não ter conseguido mais do que poderia na vida faz com que ele precise invariavelmente contar suas histórias e trazer a tona seu passado. A sua complexidade está nas ligeiras variantes que o ator proporciona, como nas diferentes maneiras com que lida com Gabe e seu filhos, Lyons e Cory: a culpa por um e o julgamento dos outros.

Viola Davis, por sua vez, oferece uma empatia marcante para Rose. A parte compreensiva do casal, ela tenta administrar todos os relacionamentos da casa, soando como o grande porto-seguro da família. A cena em que finalmente confronta Troy sobre seus 18 anos, apesar de apelativa, sublinha o talento de Davis.  


Ancorado, principalmente, em suas atuações principais, Fences é um filme eficiente acerca de relacionamentos, de cicatrizes que podem ocorrer durante a jornada e o passado sempre influenciando o presente. 

22 de fevereiro de 2017

Lion: Uma Jornada Para Casa

Lion, Austrália/EUA, 2016. Direção: Garth Davis. Roteiro: Luke Davies. Elenco: Dev Patel, Sunny Pawar, Rooney Mara, David Wenham, Nicole Kidman. Duração: 1h58min.

Sobre os trilhos de um trem, um garoto perdido mira o horizonte à procura de seu irmão. Seu nome é Saroo, que, após dormir numa estação, acabou se perdendo e pegando por engano um trem para uma ameaçadora Calcutá. Com suas expressões de assombro e encantamento sobre o mundo que percebe, num primeiro momento, a fragilidade do garoto se mostra sua inimiga ao tentar se informar sobre seu destino ou comprar bilhetes para outra cidade. Tudo é muito difícil para Saroo, que acaba sendo mandado para um orfanato de jovens abandonados.

De certa forma, a narrativa do australiano Garth Davis é sobre ritos de passagens: o nosso processo de amadurecimento e como dialogamos com o futuro, após passados turbulentos. Não à toa, a chegada de Mantosh na vida da família serve para demonstrar exatamente qual poderia ser o caminho tomado por Saroo, mesmo que o roteiro não precise sublinhar com tanto destaque. A questão levantada pelo roteiro de Luke Davies (Um Retrato de James Dean), que foi baseado no livro do próprio Saroo Brierley, é conscientemente essa: tudo gira em torno de nossa relação com o passado. E qual caminho tomaremos ao lidar com ele.

São os pensamentos que permanecem, as lembranças boas que levam o personagem de Dev Patel, ao atingir a maioridade, à procura de sua família biológica. Não existe, para ele, a memória da fome, da dificuldade. Não. É o carinho materno que o alimenta e, claro, que o guia. Portanto, é um pouco frustrante que o percurso iniciado pelo incrível Sunny Pawar, o verdadeiro talento de Lion, o qual interpreta o pequeno Saroo, nunca encontre respaldo na fase adulta de Saroo. É curioso, por exemplo, que jamais saberíamos quem era aquele homem se não tivéssemos contato com o menino num primeiro momento.

Patel, sim, consegue criar um laço através da expressividade de seu olhar, que nos lembra vagamente do garoto que encontramos no primeiro ato. Com as mesmas dificuldades de se comunicar, mas com um coração enorme. O roteiro não o acompanha, por outro lado, ao tentar saídas fáceis para seus conflitos, sem nunca soar natural: "você merece mais". A imaturidade do roteiro a partir do segundo ato não parece passar pelos personagens, que acabam evoluindo como se não dependessem desse processo. Assim, o diálogo que Saroo trava com sua mãe sobre maternidade parece de outro filme. Com outros personagens. Vivendo outras situações.

Ainda assim, a memória afetiva do pequeno Saroo criada conosco e sua disposição acaba sendo mais efusiva do que seu desfecho. Paradoxalmente, no fim, era exatamente isso que Davis queria: um filme sobre lembranças. E quando o protagonista volta aos mesmos trilhos, no último ato, parece que o garoto que vimos crescer finalmente encontrou o caminho que gostaria de ter tomado desde pequeno.  


20 de fevereiro de 2017

A Cura

A Cure for Wellness, Alemanha/EUA, 2016. Direção: Gore Verbinski. Roteiro: Justin Haythe, baseado na história de Haythe e Gore Verbinski. Elenco: Dane DeHaan, Jason Isaacs, Mia Goth, Ivo Nandi, Adrian Schiller, Celia Imrie, Harry Groener, Magnus Krepper, David Bishins. Duração: 2h26min.  

Na década de 50/60, os filmes que se destacavam no cinema de terror eram aqueles que, ao fugir da caricatura proposital da época, principalmente nos EUA, apostavam nos traumas psicológicos para render sequências assustadoras diante da impotência na crueldade vista em tela. São filmes como As Diabólicas, Os Inocentes ou O Que Terá Acontecido a Baby Jane, que incitaram outros diretores americanos a tratar o thriller psicológico como uma ferramenta poderosa do terror, onde muitas vezes o que observávamos era uma metáfora para nossos próprios problemas mundanos de isolamento, depressão e falta de autocontrole. Assim, quando Lockhart visualiza um veado preso entre escombros durante sua visita a "civilização", com uma perna presa, sem poder se locomover e tomando água infectada,  ele não está vendo apenas um animal, mas sua própria fragilidade como criatura – sua ineficácia ante aos desejos de outros.

Quem representa essa opressão frente ao personagem de Dehaan não é o capitalismo selvagem que é citado logo no primeiro ato, mas o maior vendedor de todos – Volmer, que de alguma forma fascina Lockhart por lhe vender algo muito maior do que jamais pensou: um sonho. Ao menos em princípio, é o que segura Lockhart: a sua infantilidade perante ao novo, ao desconhecido, ao que lhe desperta curiosidade. Desta forma, o instituto apenas lhe deixa os pensamentos quando encontra Hannah. Mas é sempre um tênue Volmer que arma um conflito entre sua mente e seu corpo. Nunca Hannah, que fica à parte da disputa. Jason Isaacs personifica o diretor da instituição com uma riqueza de nuances admirável, onde se dá para perceber diversas homenagens as múltiplas facetas de Vincent Price nos anos 60, com seus doutores dispostos a todos os tipos de sacrifícios e o exagero teatral característico dessas personas. Volmer é Roderick Usher, é Nicholas Medina, é Erasmus Craven, é Robert Morgan, é Prince Prospero. Um extremista que chegou até onde muitos não chegaram: a descoberta da imortalidade. A cura da morte.

Essa pretensão do roteiro de Justin Haythe e Gore Verbinski encontra um respaldo gigante na maneira como o diretor nos insere na trama. Sempre aproveitando os sons ambientes para causar agonia e temor, Verbinski já nos mostra o choque da morte num simples infarto, que não serve apenas para indicar o falecimento do personagem que teria sua jornada até o Centro de Volmer, mas para denunciar exatamente o que o filme trataria: a nossa eterna briga com o corpo, que passa a ser nosso principal inimigo. Volmer encontra uma maneira de se desvirtuar de seu próprio corpo. Criar camadas para que possa parecer quem ele queira. Moldar o mundo a sua forma. Desta forma, o cineasta sugere a vida eterna sem jamais entrar nesse mérito. Não explicitamente, ao menos. E esse é seu charme.

Pontuando sua narrativa com inclusões de situações que podem apontar para uma confusão mental do protagonista, como suas constantes visões ou sua paranoia típica de paciente, Verbinski brinca com outros exemplares do gênero para dar ainda mais substância para uma trama que seria simplista nas mãos de outros cineastas (o cantarolar que homenageia Os Inocentes é tão sedutor quanto as cenas fortíssimas de extrações dentárias). Desta forma, numa narrativa de repetições (e como não se encantar pela repetição suprema, o incêndio?), Volmer se torna vítima das próprias circunstâncias que fizeram suas pesquisas renascerem. Uma ironia fina de um destino esperado. 


2 de fevereiro de 2017

A Qualquer Custo

Hell or High Water, EUA, 2016. Direção: David Mackenzie. Roteiro: Taylor Sheridan. Elenco: Dale Dickey, Ben Foster, Chris Pine, William Sterchi, Gil Birmingham e Jeff Bridges. Duração: 1h42min.

No cenário pós-bolha econômica que o mundo vive, é muito fácil criar um paralelo entre a ficção demonstrada no tragicômico A Qualquer Custo e a realidade norte-americana. Dialogando sobre política externa e interna, o filme do interessante David Mackenzie (Sentidos do Amor) se preocupa bastante em ridicularizar o preconceito americano criado por políticas cada vez mais antifronteiras e, ao mesmo tempo, apontar com cinismo os foras-da-leis modernos que decidem usar bancos, após assaltá-los, para conseguir ficar com seu patrimônio próprio.

Nesta ótica de faroeste contemporâneo, onde os cavalos são trocados pela quantidade deles no motor de veículos potentes e as estradas são asfaltadas, Mackenzie é honesto desde o princípio em sua crítica ao sistema, quando lemos "três idas ao Iraque e nenhuma ajuda para nós" pichado em um muro – caçoando da hipocrisia governamental. Ao mesmo tempo que a trama vingativa dos irmãos interpretados (com excelência) por Chris Pine e Ben Foster faz chacota com algumas das particularidades texanas mais polêmicas ("o porte de armas complicou os assaltos a banco"), o cineasta constrói a ideologia do seu filme naturalmente, culminando na compreensão final do xerife de Jeff Bridges sobre a cumplicidade dos irmãos.

E se a fotografia de Giles Nuttgens se encarrega de aproveitar em tomadas panorâmicas as grandes estradas que os dois irmãos percorrem para chegar aos seus destinos, os raccords entre os diálogos e as canções sempre funcionam bem – meu favorito é uma fala de Long Gone para a música You Ask Me To – e os diálogos cínicos de Sheridan são o afrodisíaco de A Qualquer Preço. Denunciando o preconceito com imigrantes, não à toa o xerife de Bridges faz o típico texano clássico, os melhores momentos do longa-metragem passam por essa autochacota, como um personagem se sentindo surpreso com o fato dos assaltantes não serem mexicanos ou Alberto (Birmingham) perguntando para Marcus se ele era cristão e este respondendo que sim, mas que não era um idiota.


Essa falta de pudor em se autoparodiar e chacotear seus próprios personagens torna A Qualquer Preço um dos filmes mais interessantes de 2016. 

12 de janeiro de 2017

Criada, A

Ah-ga-ssi, Coréia do Sul, 2016. Direção: Park Chan-Wook. Roteiro: Chan-Wook Park e Seo-Kyeong Jeong, baseado na obra de Sarah Waters. Elenco: Min-hee Kim, Tae-ri Kim, Jung-woo Ha, Jin-woong Jo, Hae-suk Kim, So-ri Moon. Duração: 2h24min.

Ao entrar numa casa desconhecida, Sooke (Tae-ri Kim) começa a sentir que está sendo vigiada pelos quadros do local em que mora Hideko (Min-hee Kim), uma herdeira que leva uma vida pacata junto ao seu tio tirano, o qual sobrevive às custas de histórias eróticas lidas para ricaços. Assustada com a atmosfera do casarão, Sooke chega a despertar alguma graça quando entra no quarto de Hideko pela primeira vez e ouve uma história sobre o fantasma da tia desta – apenas para, depois, a herdeira pregar uma peça com um lençol branco. Ali, o que se torna raro no filme, estamos dentro de uma visão de terceira pessoa, do lado de fora, olhando para as duas pela janela, sem consciência particular. É somente uma introdução.

Esse é o segredo do genial Park Chan-Wook ao nos levar às perspectivas de Hideko e Sooke, separadamente, a partir do segundo ato. Ao não conhecermos propriamente suas intenções, a surpresa que seus pontos de virada causam são enormes. O sul coreano, desta forma, pouco tenta falar sobre a invasão japonesa na Coreia do Sul (a única cena talvez mais atrevida, nesta ótica, seja crianças marchando logo atrás de soldados na chuva), pois ele sabe que seus personagens se encarregarão de expor a hipocrisia daquele cenário de forma sutil.

A paixão pelo brutal, pelo masoquismo, dos grandes ricos que se excitam com a descrição de mulheres subjugando homens sublinham esse quadro. Park trata a masculinidade e sua tentativa de ser viril como algo comicamente desprezível – não só dos idosos escondendo seus membros com a mão ao ouvir uma das histórias contadas por Hideko, como também o tio batendo na tia e na sobrinha enquanto seu pênis fica ereto (num plano detalhe eficiente) ou em como o Conde só se preocupa em manter seu órgão antes de seu destino inevitável.

Deste modo, o que antes era chibata, torna-se prazer e algo que não desperta mais memória para Hideko, na cena final, em que as duas dividem um instrumento de dor para atingirem o orgasmo. É, ao mesmo tempo, lindíssima a forma como o cineasta sublinha o encantamento uma pela outra: a cena mais óbvia é a da banheira, onde cada uma de suas perspectivas são mostradas, numa forma brilhante de simular uma tensão – no olhar e no lábio úmido.  

Assim como em Carol, Park se preocupa com a sensação de cada uma e com a leveza da paixão em contraste com o descontrole do tesão. Um paradoxo lindo para se filmar. E que o cineasta faz como poucos.