30 de dezembro de 2019

Os 25 Melhores Filmes de 2019

Nenhuma lista é um consenso. São atestados de um momento, de um contexto, de um ano ou às vezes da própria personalidade do crítico. Listas de melhores filmes/livros/música podem e devem ser diferentes umas das outras – ou qual seria a graça se todos concordassem em tudo? Listas, acima de tudo, necessitam ser argumentativas. A arte pode e deve ser embasada. A paixão pode andar de mãos dadas com a racionalidade, afinal. Listas indicam, sintetizam e permitem a nostalgia, a retrospectiva açucarada ou a reação inflamada. Mas, principalmente, listas destacam: uma grande atuação, um grande filme, um grande diretor, uma grande sequência. Listas de melhores do ano são divertidas por nos colocar diante do passado com reverência e apontar o que de melhor chegou a nós no mundo das artes.

Para mim, o melhor do cinema de 2019 é representado pelos 25 filmes a seguir:

25. Dois Papas, de Fernando Meirelles 


Meirelles tem o controle soberano sobre um filme de amor e comunhão num momento caótico- provavelmente, o mundo que enxerga. Jonathan Pryce é inesquecível, assim como sua personificação de um homem que escolhe não fugir de seu passado.

24. Professor Substituto, de Sébastien Marnier 


"O medo é contagioso". Um retrato assustador sobre a passagem do conhecimento, da promessa para frustração, da juventude para a fase adulta, numa ótica que flerta com horrores psicológicos como Os Inocentes.

23. Coringa, de Todd Phillips 


Coringa combina algumas das apropriações mais interessantes do terror a partir dos anos 60, quando a estrutura do gênero começou a se aprofundar mais no tom desafiador que gerava se debruçar num psicopata, como A Tortura do Medo. Arthur provém de um mundo alarmante e Philips constrói o caos em cima desta personalidade, onde a gentileza é uma fantasia.

22. Piranhas, de Claudio Giovannesi 


Existe uma decisão de Claudio Giovannesi que orienta o espectador por sua principal intenção narrativa (e a mais profunda): deixar-nos próximos de Nicola. Ao enquadrar seu protagonista sempre absoluto, o diretor nos imerge no ponto de vista de Nicola - fazendo com que cada sensação nova seja identificada pelo público com naturalidade: de seu entusiasmo até a sua ingenuidade. Compreendemos tristemente, afinal, o caminho daqueles adolescentes sedentos em querer fazer parte de um sistema tóxico, em querer se sentir abraçados por todos, em querer admiração social, dinheiro, sexo e poder. Giovannesi troca os likes da internet pela rua ao tratar sobre a juventude, porém faz com que um filme acerca de gangues ainda consiga se manter atemporal e profundo.

21. Synonyms, de Nadav Lapid 


É comovente a maneira com a qual o personagem do ótimo Tom Mercier tenta se impor sobre seu próprio destino, sem perceber que o controle nunca estará ao seu alcance. Navad Lapid transita por momentos românticos, obscenos e outros de crise, de desespero e de solidão profunda, onde ninguém está lhe ouvindo. É um testemunho eficiente sobre a vida e a nossa identidade. Sobre a liberdade e o que nos reprime. Sobre pertencer e não pertencer, na mesma intensidade, neste mundo.

20. Irlandês, de Martin Scorsese


Aos 77 anos, Scorsese passa a querer compreender um pouco mais da proximidade da morte natural como penitência. Há uma pergunta que parece invadir O Irlandês sem que nunca seja realmente enunciada: “o que sobra para quem vive demais?“.

19. Mike Wallace Está Aqui, de Avi Belkin


Por meio de uma poderosa montagem visual e sonora, o documentário de Avi Belkin deixa claro o tipo de jornalista que Mike Wallace era sem que precise apontar ao espectador e dizer - olhem só, vejam isso. Humano como poucos, Mike se misturava com a gana social por respostas claras para grandes questões, equilibrando-se entre o ousado, o atrevido e o consciente. Acima de tudo, o filme nos evidencia o caráter que separa Wallace de outros tantos imitadores condenáveis - sua empatia e a sua paixão pela verdade.

18. Loucuras de Rose, de Tom Harper 


Quando Ashley McBryde canta Girl Going Nowhere, numa cena extremamente delicada de Wild Rose, ela não está ecoando apenas a sua voz, mas marcando na sua música uma geração inteira. Uma geração inteira de jovens compositoras que percorrem mundos nefastos para chegar até um palco e serem capazes de reproduzir seus versos para milhares de pessoas. As luzes se apagam e lá está - a artista, o violão e a sua música. Uma das poucas coisas da vida que pode chamar de sua. Aquele simples instante nos demonstra a força de uma artista e da arte na nossa personagem-título, a qual entende (aos poucos) que todos têm sua própria história e sua própria casa. Todos possuem sua própria mensagem. O caminho é doloroso, competitivo, solitário e profundo, como uma boa música country.

17. Vida Invisível, de Karim Aïnouz


A principal pergunta de Karim Aïnouz corresponde a: “de quantas lacunas uma história precisa?“. Qual a diferença entre o que previmos, o que realizamos, o que idealizamos e o que é real? A Vida Invisível é justamente sobre uma vida que não se fala, uma vida desigual, ainda que, ironicamente, tão comum. O resumo da obra do cineasta cearense é que a vida nunca sairá como imaginamos. São as lacunas, entretanto, que carregam a força do filme – as famosas entrelinhas – e, por que não, da bagagem de cada um de nós.

16. Beach Bum, de Harmony Korine


Matthew McConaughey em um daqueles papéis que um grande ator se depara apenas uma vez na vida. Muito além do nonsense e da graça, Moondog traz profundidade, sensibilidade e humanidade, em The Beach Bum – talvez meu filme favorito do Harmony Korine. Ainda não estreou no Brasil.

15. Não Mexa Com Ela, de Michal Aviad


Liron Ben-Shlush é soberba na pele de uma mulher trabalhadora que é abusada pelo chefe Benny (Menashe Noy). A obra da diretora Michal Aviad é cruel e crua na medida, conseguindo deixar o espectador impotente diante dos avanços constantes de Benny e alerta à nossa própria realidade.

14. Mustang, de Laure de Clermont-Tonnerre


Laure de Clermont-Tonnerre cria um testemunho poderosíssimo sobre a ressocialização de um preso, o qual alia um mundo de selvageria e violência com o de comunhão, de humanização e de claras vicissitudes. A transformação de Roman não vem por caráter punitivo ou clichê, mas com a autorreflexão da importância de se sentir parte de algo, de voltar a sonhar, de se sentir novamente valorizado. Há um valor documental na obra de Laure. O cavalo selvagem jamais soa uma analogia simples e óbvia. A diretora é capaz de evidenciar a impotência diante de nossa condição contextual com a mesma naturalidade do gatilho que provoca o desejo de amor ou de vingança.

13. Jojo Rabbit, de Taika Waititi


- Hora de queimar alguns livros!

- Yeaaaahhhh!

Surpreendente, debochado e ousado, Jojo Rabbit inicia com uma hilariante apresentação de seu personagem-título (o incrível Roman Griffin Davis), cujo amigo imaginário é nada mais nada menos que Adolf Hitler, na frente de um espelho, sinalizando afinal o que a vida na França espera dele naquele momento. Depois de um rápido "aprendizado" em um campo escoteiro nazista, onde ganha o apelido "Rabbit", Jojo fabula sobre um mundo que não existe, enquanto as projeções aleatórias e surreais dos coadjuvantes evidenciam as humilhações impagáveis de um período absurdo da história do mundo expostas por Taika Waititi. Há algo bizarro, estúpido, debilitante e juvenil no preconceito, afinal. Estreará comercialmente em janeiro de 2020.

12. Dor e Glória, de Pedro Almodóvar


Salvador Mallo (Banderas) é um homem que não pertence ao presente. Perdido entre seu sentimento de não pertencer ao mundo que vive e os flashes de sua memória que insistem em se confundir com sua realidade, ele se entorpece com pequenas doses diárias de medicamentos. Procura abraçar seu passado, inclusive perdoando narrativas que havia superado, na mesma intenção de projetar um futuro que possa fazer parte. A procura de Salvador acaba encontrando o símbolo máximo do artista: como se respira? Deixando o nosso pensamento sair para telas, passear por letras e encontrar nossos destinatários, é o que raciocina.

11 Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles


A decadência da humanidade na visão de Kleber e Juliano encontra uma alta dosagem de John Carpenter e Glauber Rocha. Bacurau é quase um faroeste nordestino que reside na tênue linha entre passado, presente e futuro. Tudo é complementar. Tudo é orgânico. Tudo é fundamentado em porquês. É um testemunho poderosíssimo sobre a recente ira que incendeia o mundo e no que isso pode nos transformar.

10. Ford V Ferrari, de James Mangold


Uma das repetições mais inteligentes presentes no filme de James Mangold, Ford V Ferrari, é o silêncio. Ele é absorvido pelo público em situações diferentes, por homens distintos, vivendo vidas distintas. Porém, de alguma maneira, todos os personagens refletem sobre a mesma pergunta levantada ao início e ao final do longa-metragem: "quem é você?". A obsessão em Ford V Ferrari pela vitória pode garantir diferentes respostas.

9. Uncut Gems, de Josh e Ben Safdie


Impulsivo, barulhento e naturalmente brutal, Uncut Gems – a obra nada sutil de Josh e Benny Safdie – expõe um mundo capitalista violento e nocivo, onde para se vencer, na visão de Howard Ratner (Adam Sandler, brilhante), é necessário ser rotineiramente ardiloso e estar disposto a apostar tudo.

8. Uma Vida Oculta, de Terrence Malick 


"Eu tenho esse sentimento dentro de mim que não permite fazer algo que eu não ache certo". A ótica humanista sobre a guerra, de Malick, retrata uma batalha ridícula, opressora e debilitadora ao invés do caráter vil, entusiasta e de entretenimento violento que se vê rotineiramente. Numa determinada cena, dois homens se reconhecem e se abraçam entre algemas por não compactuar com a morte de inocentes. A caminhada pela peregrinação humana sobre a violência vai numa interessante valorização do ritmo, da comunhão e da paz campestre que jamais entende o fascínio pela morte de outras pessoas. É uma obra sobre uma paz interna que não existe no mundo externo. Ainda não estreou no Brasil.

7. Retrato de Uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma 

 
A intensidade de certas histórias de amor nos arruínam quase na mesma intensidade com que nos amadurecem. A única certeza que temos é a lembrança boa de termos vivido o que vivemos e, com a arte, sermos recordados aqui e ali que já fomos felizes - é isto que sintetiza a relação de Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse (Adèle Haenel), na França do século XVIII, e que permanece tão palpável ao jovem do século XXI. Estreia em janeiro.

6. Farol, de Robert Eggers



A primeira imagem do novo filme de Robert Eggers, do aclamado A Bruxa, é um grandioso farol, em uma ilha afastada, que direciona os dois pescadores Thomas Wake (Williem Dafoe) e Ephraim Winslow (Robert Pattinson) até seu acesso. A metáfora do norte-americano sobre a vida e a morte é encaminhada neste princípio: o que nos traz e o que nos leva? O que está entre o início e o fim? A luz. Estreia em janeiro.

5. Dragged Across Concrete, de S. Craig Zahler

 
Um mundo melancólico carregado de pessoas depressivas, instáveis e caóticas. S. Craig Zahler segue sua visão pessimista sobre a violência aleatória em nossa sociedade e a tênue linha que nos separa de monstros. Ainda não estreou no Brasil.

4. Feliz Ano Novo para Colin Burstead, de Ben Wheatley


"Eu iria escrever uma nota de suicídio no meu celular, mas ele estava ficando sem bateria".

A disfuncionalidade da família britânica combinada ao Brexit fornece o tom do novo filme de Ben Wheatley, o qual - arrisco a dizer - é um dos melhores diretores da atualidade. Claramente influenciado por Robert Altman e seu Cerimônia de Casamento, Happy New Year, Colin Burstead é sobre aceitação, diferentes tipos de ansiedades e a experiência familiar completa. Como lidamos com nossas diferenças? Ou como lidamos com nossas apropriações, frustrações e como tentamos deixar tudo perfeito, sem interferências emocionais? Com uma trilha sonora arrebatadora do genial Clint Mansell, o que não é dito pela família Burstead pode soar ainda poderoso do que o explícito. É uma viagem completa e provocadora sobre nossas próprias festas em famílias e o que se espera de nós como filho, como sobrinho, como neto, como irmão e como humano. Ainda não estreou no Brasil.

3. Para Sama, de Waad al-Kateab e Edward Watts


A primeira cena deste documentário traz Waad al-Kateab ouvindo o choro de sua filha num hospital enquanto grava o barulho de bombas e a fumaça do gás lacrimogêneo que faz com que todos procurem abrigo no subsolo. Enquanto nossa protagonista procura sua filha, um recém-nascido passa por sua câmera sendo carregado, amolecido, por um enfermeiro. Esse é o chocante início de For Sama, um testemunho intimista sobre a guerra na Síria e sobre nossa fagulha de amor num mundo opressivo. Waad al-Kateab jamais poupa o espectador da realidade do cerco em Alepo, tampouco o quanto afeta aquelas pessoas – desde o impactante nascimento de um bebê no mundo de guerra até uma criança contando que sente falta dos amigos mortos

2. Histórias de um Casamento, de Noah Baumbach


Noah Baumbach constrói um termômetro magnífico sobre as transformações de um relacionamento e as conseqüências para a criança que catalisa as emoções da história. Os enquadramentos fascinam por evidenciar uma lógica visual estimulante, na qual observamos a personalidade de cada um através de pequenos detalhes como um quadro ou uma parede vazia. A força das atuações de Scarlett e Driver acrescentam genuinidade para a história proposta por Baumbach, que se concentra em não apontar culpados, mas as falhas do processo.

1. Midsommar - O Mal Não Espera a Noite, de Ari Aster


O novo filme de Ari Aster, Midsommar, basicamente sintetiza o horror moderno como uma ode ao estranhamento. Com a rica evolução do gênero através dos anos, o medo passou a ser muito mais uma associação simbólica de angústia e perturbação do que a literalidade de um monstro ou, diria também, do próprio satã. O diabo moderno não se mostra, mas se sugestiona. E perturba. Midsommar entende seu papel, ao observar a morte, o suicídio e o controle como formas culturais. Qual a nossa barreira, afinal, diante de outra sociedade? Quão volúvel é a moral? Ou, melhor, o nosso senso de decência? São indagações que fascinam durante a peregrinação pelo mundo desafiador de Ari Aster. É meu filme favorito de 2019.

25 de setembro de 2019

Midsommar - O Mal Não Espera a Noite (2019)


Midsommar, EUA, 2019. Direção: Ari Aster. Roteiro: Ari Aster. Elenco: Florence Pugh, Jack Reynor, Vilhelm Blomgren, William Jackson Harper, Will Poulter, Ellora Torchia, Gunnel Fred e Isabelle Grill. Duração: 1h46min.

"- Já é amanhã?
- Da perspectiva do ontem, sim."



O novo filme de Ari Aster, Midsommar, basicamente sintetiza o horror moderno como uma ode ao estranhamento. Com a rica evolução do gênero através dos anos, o medo passou a ser muito mais uma associação simbólica de angústia e perturbação do que a literalidade de um monstro ou, diria também, do próprio satã. O diabo moderno não se mostra, mas se sugestiona. E perturba. As plateias, em conseqüência, riem desconfortavelmente com seu próprio medo, embora não tenham certeza que estão rindo de algo que é ruim, afetado ou perverso. É o que fez com que a Paramount, por exemplo, fosse exatamente na contramão do marketing habitual em mãe!, enaltecendo as críticas negativas, sobre o poderoso e controverso filme de Darren Aronofsky, que cultivava um cinismo religioso acerca da mãe natureza e de um Deus misógino, o que fez com que os espectadores se sentissem incomodados com as sutilezas e com o fato de não perceber o que realmente a obra queria mostrar.

Por quê? Pois ainda que se assista a um filme de terror nos cinemas, a sensação que se busca é a de prazer ou a de recompensa. Não, diretamente, a de medo. Gostaríamos sempre de ter a certeza: a) de saber aonde o filme está indo; b) antever situações que os protagonistas passarão; c) avaliar que jamais estaríamos naquela condição, pois, afinal, somos muito mais inteligentes do que os personagens. A recompensa é individual. Se nos sentirmos ignorantes ou amedrontados, o prazer não vem, o incômodo toma conta e abominamos o que estamos assistindo.

É de uma ousadia contagiante, portanto, que Midsommar entende o papel que está disposto a ele – ao abordar as nossas próprias limitações diante de outra cultura. Qual a nossa barreira, afinal, diante de outra sociedade? Quão volúvel é a moral? Ou, melhor, o nosso senso de decência? A sensação de imoralidade de uma obra passa pelas nossas certezas sobre o que é certo e o errado, sem notar a necessidade colonizadora. Quando os americanos chegam ao local da Suécia em que passarão seus próximos nove dias, eles são recebidos com presentes, fartura, música e rituais. Ao princípio, avalia-se com curiosidade o diferente, o estranho, como tudo que se começa – há o fogo, a comida e o canto. Saber-se-á que há algo errado no instante em que eles passarão de catequistas de sua cultura para os catequizados. Isso é o que assusta, na obra de Ari Aster, e nos joga numa noção de espaço-tempo tão oportuna e diferente.

Um dos diálogos trocados no primeiro contato com o Midsommar real é:

– Que horas são?
– 21h.
– Mas o céu está azul. Não está certo.
– É assim na Suécia.
– Não, isso está errado. Tem algo errado aqui.

Para um americano que foi para outro país para provar drogas e sexo diferentes, algo está errado. Ao homem que foi estudar, o errado é interessante. Para quem foi tentar passar pelo processo de luto, por sua vez, o estranhamento se torna instigante e, naturalmente, acolhedor. Não à toa, Aster nos coloca diante de duas cenas emblemáticas de suicídio no início de cada parte: na primeira, o suicídio de uma americana dita o rumo da vida da irmã afetada, que ainda lida com o assassinato dos pais pela própria irmã; na outra, o suicídio não é visto como tal, ele é o fechamento da vida, de um ciclo, no qual há uma celebração religiosa e um compartilhamento de dor e prazer. No primeiro, uma mangueira dos bombeiros (de cor amarela) nos leva à morte. No segundo caso, girassóis nos orientam pela estrada. O choque está em como nos sentimos diante disso.

"Não pule. Não faça isso, senhor. Ajudem ele, seus monstros!", é o que grita um dos casais, ao se deparar com esse choque de realidade.. É normal que queiramos passar a nossa noção do que é certo, como se apenas nós a possuíssemos. É o que o casal faz. Ao olhar para os outros, não entendendo como podem achar aquela situação normal, o estranhamento se transforma em pavor puro, no contato inesperado com a morte. Ao se tornarem os diferentes, eles tentam ir embora.

Seria desonesto afirmar que o mundo de Midsommar é ético, no entanto. Essa não é a proposta de Ari Aster, embora o cineasta se interesse pela semântica da expressão. Ele se encanta pela nossa peregrinação e nosso contato diante da morte e da vida. O ciclo que pode ser tanto acalorado quanto sombrio. Na pequena comunidade, a dor, o sexo, a alegria e a dança são compartilhadas. Se dá e se recebe, na mesma medida. Tudo é calculado. Tem o brinde à morte e tem o brinde à vida. É uma terra de controle, onde se conhece o destino de cada um. Há uma cena em que Chris encara um urso no fogo, ao aguardar Siv. Ele vê seu fim e não o percebe, assim como não perceberá novamente na cena seguinte ao observar o equilíbrio da cruz, da dança e do templo.

Além da família, é a confiança, a segurança e a harmonia que consentem Dani se deixar levar e se transformar na pequena comunidade. Cheia de flores, que em sua "civilização" representaria o luto pós morte, ela agora se sente em paz e sorridente por poder determinar e controlar o fogo e a vida – quem vive, quem morre.

O mundo de cores de Midsommar

(leia essa parte somente depois de ter assistido ao filme)

Quando se observa o primeiro quadro do filme, a natureza dúbia das coisas é exposta, evidenciando a morte no azul e o calor quase cegante e harmonioso do amarelo. A atmosfera mundana será sempre orientada por esses extremos, os quais correspondem ao equilíbrio do mundo e cercam o emocional de cada personagem, em Midsommar. O desenho de produção da obra-prima de Ari Aster comprova constantemente dualidades em cada enquadramento do filme – torna-se comum, por exemplo, flores vivas e mortas sendo dispostas de um lado a outro, enquanto os protagonistas permanecem no centro do quadro, abajures inclinados ou retos mostrando a delicadeza da harmonia das salas em instantes perturbadores e até mesmo quadros díspares orientando essas individualidades: note acima da protagonista uma criança beijando um urso, com o inconsciente dela mostrando o predador que compartilha seu coração, num mundo abusivo. Da mesma forma, avalie como sempre existe contraposição em cada frame da primeira parte, às vezes um papel e uma caneta estão separadas por um notebook; ou Dani está entre um pente e um retrato; ou ela está no centro enquanto fala ao telefone e retratos desfocados preenchem o lado direito, ao passo que, no lado do telefone, no de Chris, somente há uma parede vazia.

Os próprios ambientes representam a batalha interna da protagonista, de tal modo, quando observamos as cores opostas da cozinha e da sala, o abajur reto e o outro inclinado no mesmo cômodo, além de quadros azuis e amarelos que parecem ir se transformando tanto quanto a protagonista – em determinado momento, o quadro azul prevê estações da lua, sem completude, ao mesmo tempo que o amarelo evidencia cabeças em raízes de árvores. Um flerte belíssimo com o primeiro quadro do filme, veja só.

Existe algo de Anticristo, de Lars Von Trier, e até mesmo Melancolia, no seu início: o público se vê diante de algo que metaforiza o amor, a depressão, o luto e o controle sobre a morte. As similaridades com Hereditário, nesta esfera da “fraqueza” perante o luto já se mostra uma marca visível do cineasta, inclusive. Embora sejam irmãos quase siameses, Hereditário e Midsommar mostram que há diferentes formas de lidar com a perda. Enquanto um mexe com a passividade e o aproveitamento de nossa fragilidade, o outro é permissivo. Dani quer que seu destino se torne aquele. Aos poucos, ela passa pela desvinculação mundana para chegar a uma cura individual.

Aliando-se à esta ótica, os figurinos orientam o espectador conforme as personalidades dos personagens se desenvolvem também. Perceba como os azuis dos personagens vão se tornando cada vez mais claros em determinadas pessoas. Apenas Simon, a esposa, Mark e Christian permanecem com camisetas com tons azuis fortes. Eles são pessoas que jamais conseguem se desprender do mundo que conhecem. De sua cultura. O único instante em que Josh e Chris são visualizados com as mesmas roupas acinzentadas é quando são forçados a fingir um compartilhamento de idéias que não acontecerá na prática. Uma dissimulação que sabem fazer bem.

Já Dani começa com uma camiseta salmão, passa para uma camiseta estampada com estrelas até chegar às cores claras daquele universo. Pelle cobre aos poucos o azul americano com a túnica branca, até não ter mais nada por baixo, quase de forma imperceptível, igualmente. As cores orientam muitíssimo bem a narrativa de Ari Aster, que ainda estabelece o contraste entre o azul e o amarelo na comunidade sempre que haverá uma morte (o casal que irá ao Ättestupa usa túnicas azuladas, p.e.), na disposição da natureza (a própria meca triangular amarela da comunidade tem portas azuis) e as flores azuis criam um norte bastante mórbido – ainda mais quando paralelas aos cabelos loiros da protagonista durante um jantar.

Ari Aster contamina sua narrativa com uma atmosfera que denuncia sua humanidade, mesmo que queira mostrar um mundo longe de como a conhecemos no dia a dia. Um exemplo disso, talvez, seja a melhor cena do filme, onde o diretor filma o sexo com uma delicadeza tão forte quanto macabra. Ali, como no luto ou na dança das bacantes, há alucinógenos, fraqueza e força, aceitação e rompimento de barreira e, finalmente, ritos de passagens. A ruiva consente à Chris o sexo não para o prazer, mas para um ciclo de fecundidade. Ao passo que todas as matriarcas de diferentes gerações formam uma espécie de cordão (um umbilical, metaforicamente), o homem se vê diante do sucumbimento ao desejo. É a última necessidade, igualmente, que Dani precisaria para se desintoxicar do sonho americano, do mundo que antes conhecia e de sua dependência. Ao vomitar, ela expurga. Ao compartilhar a sua dor com dezenas de irmãs novas, ela percebe, como o espectador, que há dor e prazer, no sexo, na vida, na traição e no mundo.