29 de fevereiro de 2016

A Vizinhança do Tigre

Idem. Direção: Affonso Uchoa. Roteiro: Affonso Uchoa. Com: Aristides de Souza, Eldo Rodrigues, Mauricio Chagas, Wederson Patrício, Adilson Cordeiro. Duração: 95 minutos. 

Próximo de suas vozes, do barulho da enxada e suor, o contato com os jovens da periferia de Contagem, em Minas Gerais, é imediato. Quase que escondidos, num primeiro momento, em suas casas, os meninos representam um Brasil desconhecido para muitos. Mantendo a câmera sempre próxima de Neguinho, Juninho, Eldo, Adilson e Menor, Affonso Uchoa expõe a parte enclausurada da nossa sociedade com o pouco que possuem: o máximo de pessoas num lugar apertado, comendo em pé e ligados nas coisas mais simples.

Um dos personagens mais fascinantes do drama documental, Neguinho, brinca de “arminha” com um cabide rosa, enquanto veste uma camiseta do circuito cultural Banco do Brasil. Da mesma forma, ele usa um espeto como uma espada, numa brincadeira. Para o jovem daquela periferia, a violência é vista como uma coisa normal, quase ingênua. O ambiente denunciado por Uchoa, sob esta ótica, surge constantemente palpável, onde a música é uma das poucas coisas que mantém a atenção dos moleques e fazem eles serem mais criativos, assim como, ainda que os pais não sejam presentes (e observe como são raras as vezes em que uma mãe é vista), um dos garotos se esconde ao usar crack, com receio da reação dos outros.

É muito bem estudada, aliás, as relações entre os garotos e a maneira como se desenvolvem durante a projeção. Desta forma, a brincadeira de Neguinho usando o cabide como uma arma é trocada por uma arma real – mais adiante. Seguindo os passos dos garotos e estabelecendo um clímax coeso, o diretor usa o próprio Juninho para dar voz para sua aflição final: “Tudo tem que mudar”, assina o jovem. É um recado importante. 

Deadpool

Idem. Direção: Tim Miller. Roteiro: Rhett Reese, Paul Wernick, baseado nos personagens de Fabian Nicieza e Rob Liefeld. Elenco: Ryan Reynolds, Morena Bacarin, Karan Soni, Ed Skrein, Brianna Hildebrand, Stefan Kapicic, T.J.Miller, Jed Rees, Gina Carano. Duração: 108 minutos. 

Dentro do universo Marvel, além da forma como a sociedade enxergava os diferentes, o cinismo e o abandono sempre foram duas das particularidades mais complexas dos personagens que faziam parte dos filmes. Para esconder a sua fragilidade emocional e o medo das situações mortais que se envolvia, o Homem-Aranha exibia uma irreverência e cinismo que compactuavam com essa persona meio infantil exposta no seu cotidiano. O Coisa, de Quarteto Fantástico, por outro lado, devido sua aparência considerada grotesca, camuflava-se na sua força extraordinária e afastava-se da mulher que amava por medo de repulsa. Nos dois casos, o abandono e a solidão eram as características mais peculiares. Assim, Deadpool já seria uma obra instigante por capturar essas intenções dentro de sua abordagem. Claro, se não abdicasse de sua "sensibilidade" para ridicularizar exatamente o universo onde foi concebido e as escolhas óbvias que esse mundo fornece.

E é deste os créditos iniciais, quando Deadpool já ironiza a forma como a Marvel Studios tratou os filmes de origem dos heróis até agora, que o diretor Tim Miller acerta no deboche ao assumir a fórmula que embarca: um cara gostoso, uma mulher gostosa, um alívio cômico, uma adolescente problemática, um cameo gratuito e assim por diante.

O personagem de Ryan Reynolds, que brinca várias vezes com o fato de já ter interpretado o Lanterna Verde, encontra no sadismo uma forma de irreverência. Não apenas em suas piadas de cunho sexual diante da carnificina ("eu vou me tocar à noite" ou "Vou pedir uma coisa que nunca pedi antes: não engula!"), como também nas gags visuais com assassinatos e referências pops: algumas das minhas favoritas são a com Limp Bizkit, a soletração com corpos e  a piada com 127 horas.

Mas é no cinismo com que encara as próprias adaptações dos super-heróis que Deadpool sobe o nível. "Então, você provavelmente está pensando sobre qual saco tive que puxar para ter meu filme solo. Eu vou lhe dar uma dica: rima com polverine.", caçoa o personagem-título. Aliás, incluído na linha temporal dos X-men, o próprio conceito de reboot é abrangido por Deadpool que pergunta se o universo é o de McAvoy ou Stewart, bem como assimila que o estúdio não deveria ter dinheiro, já que só dois X-Mens numa escola aparecem para atender Deadpool.

Quebrando constantemente a quarta parede, portanto, o personagem nunca deixa de ridicularizar o próprio público das HQs que estão sempre esperando a cartilha dos estúdios Marvel, algo que já virou uma fórmula desgastada e inofensiva. Deste modo, Deadpool é realmente um sopro de criatividade por desdenhar dos clichês, indicando-os durante seu próprio filme de origem.

Ryan Reynolds é um grandioso acerto da produção, por consequência, já que, com um passado que poderia ser julgado, acaba rindo de si mesmo durante vários momentos, principalmente de sua aparência: "Você acha que Ryan Reynolds chegou aonde chegou por talento?", ele despreza. Da mesma forma que o próprio físico do ator (ressaltados em closes fechados no quarto que divide com Vanessa) serve para evidenciar a assustadora mudança que decorrerá do processo ao qual se submete.



Como Pânico foi para o slasher, Deadpool é uma bobagem gigantesca, mas que aproveita as convenções do gênero para criar uma profundidade genuína. No meu momento favorito do longa-metragem, Reynolds chora e observa a chuva cair, enquanto sua namorada dorme na cama. Quando indagado sobre o por quê estar ali, ele diz que teve um pesadelo: era Liam Neeson pensando que ele havia sequestrado sua filha. Está ali, o segredo de Deadpool: a vulgarização do pop. Com uma dose de drama e um timing cômico inesquecível. 

Steve Jobs

Idem. Direção: Danny Boyle. Roteiro: Aaron Sorkin, baseado no livro de Walter Isaacson. Elenco: Michael Fassbender, Kate Winslet, Seth Rogen, Jeff Daniels, Michael Stuhlbarg, Katherine Whaterston, Perla Haney-Jardine. Duração: 122 minutos. 

"Think different" - é o slogan que o iMac sugere atrás de um atormentado Steve Jobs discutindo com Woz  sobre dar crédito aos músicos da orquestra que o conduziram até o palco que ele está pronto para comandar novamente. Nos bastidores e nos holofotes, o roteiro de Sorkin nos entrega a obra biográfica definitiva para compreendermos a mente por trás da Apple.

Ao contrário do que os fãs da empresa poderiam pensar, o seu messias da tecnologia é uma pessoa humana,  quase maldosa, se não fosse tão indiferente a tudo. E é num trabalho de gênio que Michael Fassbender expressa as angústias que corroem o interior de Jobs de uma forma inesquecível: nesta perspectiva, o relacionamento com sua filha é o fio condutor mais forte do longa-metragem, que denuncia o afastamento da paternidade como um ponto primordial para entender a figura contraversa do biografado. Afinal, Steve Jobs foi abandonado quando era criança, segurou-se nos seus "filhos" tecnológicos, colocou o nome de sua filha num de seus produtos, relacionou-se apenas com o futuro, em suas projeções. O presente era esquecido.

É compreensível, portanto, que o atraso de uma de suas apresentações seja um ponto decisivo no relacionamento com Lisa, que tem uma relação ambígua com seu pai. Se no começo, ela apenas desenha uma possibilidade para Jobs, ela lhe dá seu santo graal, no fim: ao estimulá-lo a produzir o Ipod e, futuramente, o Iphone. "Dá para ser talentoso e decente, ao mesmo tempo; uma coisa não anula a outra", fala Waz, durante uma discussão; uma sentença que dita todo o ritmo da obra.

No design de produção, o amadurecimento da persona pública de Jobs também é muito bem evidenciado: observe que se num primeiro momento, o cabelo comprido e juvenil lhe dá um ar de frescor revolucionário, na apresentação de 1984, e o paletó lhe parece deslocado; o seu smoking na segunda, em NeXt, com seu figurino de modelo e maestro, bem posicionado numa estrutura colossal, digna de palácio, reflete seu egocentrismo maior, a crença que sua imagem precisa ser reverenciada; enquanto, no fim, ele aparece com seu conhecido traje mais clean, com suas calça jeans e camiseta preta. Sua figura está transformada.

Existe uma frase no documentário de Alex Gibney sobre Steve Jobs, chamado de The Man in the Machine, que é perfeita: "a tristeza da alma expressada na beleza das coisas". Noutra desconstrução de um mito, como já havia feito no fabuloso A Rede Social, Aaron Sorkin acerta novamente ao evidenciar esse estigma.