26 de fevereiro de 2013

Além das Montanhas

Dupa dealuri, Romêmia/França/Bélgica, 2012. Direção: Cristian Mungiu. Roteiro: Cristian Mungiu, inspirado por um romance de não ficção de Tatiana Niculescu Bran. Elenco: Cristina Flutur, Cosmina Stratan, Valeriu Andriuta, Dana Tapalaga, Catalina Harabagiu, Gina Tandura, Vica Agache, Nora Covali, Dionisie Vitcu, Ionut Ghinea, Liliana Mocanu, Doru Ana e Costache Babii. Duração: 150 min.

Em 1994, o jornalista e escritor Christopher Hitchens lançou um documentário para TV sobre o tratamento dos doentes, que beirava ao criminoso, feito por Madre Teresa de Calcutá. Anjo do inferno (numa tradução literal) indicava o quanto a fé acabava influenciando os adoentados a passarem por situações terríveis e sem cuidados médicos apenas porque alguém se autoproclamava um enviado do espírito santo. Essa abordagem, de certa forma, é a mesma que Mungiu procura evidenciar em seu mais novo filme: um padre de uma pequena paróquia isolada “acredita” que através de orações, usando de tortura e amarras para pregar a “vontade de deus”, poderia curar o amor entre duas mulheres.

Escrito e dirigido por Cristian Mungiu (do inesquecível 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias), a trama gira em torno de Alina (Flutur) e Voichita (Stratan), duas grandes amigas que não se viam há muito tempo e se reencontram depois de anos na Romênia. Alina pretende, inclusive, convencer Voichita de abandonar sua atual morada – um pequeno convento afastado das grandes cidades, onde ela pensa ter encontrado um lar e a fé. Combatendo ferrenhamente o padre da comunidade, Alina começa a despertar o medo e descrença das freiras, que passam acreditar que a moça está possuída por um espírito maligno; começando-se uma série de orações e torturas à “estranha” visitante.

Vale ressaltar, nesta perspectiva, que Mungiu é extremamente sábio e sutil em como tratar as duas personagens: jamais expositivo na forma como elas se amam e apenas sugerindo um antigo desejo entre ambas. Da mesma forma, sua mise-en-scène é sempre elegante e mantém a câmera próxima da trama o tempo todo, criando-se, em alguns momentos, um viés claustrofóbico. Neste caso, analise o instante em que o diretor prefere esconder o rosto de Alina quando ela confronta todos do convento ou a maneira como todos a cercam, fazendo uma espécie de interrogatório, quando ela volta a acordar no hospital. Mas é a naturalidade como expõe as angústias daquelas pessoas que é o grande triunfo do filme: a partir disso, observe a conversa reveladora de Voichita com um policial, os olhares julgadores direcionados a Alina, a anotação dos pecados e as primeiras manifestações de temor com a agressividade da protagonista (“Ela estava falando com outra voz”).

Mungiu é brilhante em como ele vai pontuando essas certezas que as freiras têm a respeito de Alina e, assim sendo, consegue aumentar a insegurança do espectador com o que irá ocorrer dali em diante – por exemplo, note como ele mostra um carro chegando para pedir informação somente para, mais uma vez, lembrar o isolamento daquele local. Um ambiente que é muito bem demonstrado, aliás: precário, iluminado por velas, onde ambulâncias não costumam ir e com comida escassa. Apenas a fé daquelas pessoas é relevante. Para Mungiu, é nesta fé que reside os principais perigos. As supertições que os rodeiam acabam sendo o fator decisivo para o tratamento com o desconhecido, onde cruzes pretas, manifestações demoníacas e a quebra de ícones religiosos imprimem uma insegurança que eles não estão acostumados. Considere o temperamento do padre diante das circunstâncias enfrentadas, o medo diante de uma condição em que ele não está habituado. Como se não fosse o bastante, o roteiro também proporciona frases que complementam com substância o drama vivido (“Estou suja!” ou “O homem que vai não é o mesmo que volta!”).

É interessante, por fim, como o pessimismo de Mungiu com o mundo influencia tanto suas obras. Não é surpreendente, portanto, ao sairmos da desordenada comunidade religiosa, visualizarmos numa cama de hospital uma jovem que havia tentado o suicídio apenas porque sua menstruação não chegava há semanas. Essa é a compreensão mundana do romeno: um lugar em que o amor/sexo é visto como uma concepção maligna e onde a sobrevivente passa a andar na direção contrária a todos os outros adaptados.
                                 

25 de fevereiro de 2013

Indomável Sonhadora

Beasts of the Southern Wild, EUA, 2012. Direção: Benh Zeitlin. Roteiro: Lucy Alibar e Benh Zeitlin, baseado em uma peça escrita por Alibar. Elenco: Quvenzhané Wallis, Dwight Henry, Levy Easterly, Lowell Landes, Pamela Harper, Gina Montana, Amber Henry, Jonshel Alexander e Joseph Brown. Duração: 93 min.


Hushpuppy é uma garota estranha. Não por viver em uma situação caótica e humilhante – como muitos, infelizmente, vivem – ou tirar o melhor do ambiente em que está, mas por ser uma criança que discorre sobre a vida e o universo em seus pensamentos e que vez ou outra pensa que quando alguém morre vira um inseto ou uma árvore. Isto acaba sendo o mais conflitante do roteiro de Alibar e Zeitlin, pois enquanto parece que estamos assistindo aos pensamentos de uma garota ingênua somos introduzidos a momentos de pura pretensão filosófica – algo que destoa do clima esperado pelos realizadores.

Escrito por Benh Zeitlin e Lucy Alibar, a história gira em torno de uma pequena garota de seis anos de idade que habita em uma comunidade miserável que sofre de problemas com a chuva. Hushpuppy vive seu dia a dia por meio de incertezas, principalmente quando o pai aparece doente e com roupas de hospital certo dia. Após uma última tempestade devastadora, que inunda toda a comunidade, eles procuram os amigos que ficaram e tentam retomar a rotina.

É curioso como essa perspectiva se dá através dos olhos da personagem vivida por Wallis: Zeitlin oferece todos os problemas que aquelas pessoas sofrem por uma reflexão juvenil. Assim, observamos búfalos gigantescos devastando sociedades e o derretimento de geleiras simbolizando os trovões que são ouvidos por Hushpuppy – que pouco antes tinha ficado impressionada com uma foto que havia visto. Da mesma forma, o diretor acerta em sublinhar o espaço deprimente que pai e filha se encontram, onde a hora do almoço é o momento mais esperado do dia – e um pedaço de frango sendo assado rotineiramente fica bem representativo – e a parte traseira de uma picape é utilizada como um tipo de barco. Além disso, note como Zeitlin procura sempre trazer desconforto e instabilidade com sua câmera agitada.

Todavia, criam-se cenas que pecam pela breguice como são apresentadas. Neste caso, destaco a cena em que Wallis conversa com uma cadeira como se fosse sua mãe, algo que nem de longe oferece o sentimentalismo que merecia. Ao mesmo tempo, o roteiro não parece ter certeza ou confiança acerca dos pensamentos de Hushpuppy: assim, além da citada cena da árvore, analisamos como ela está ciente de suas condições, sabe o que fazer quando o pai está doente, mas decide comer comida de gato quando se encontra sozinha.

Apesar de prematura, a indicação de Quvenzhané Wallis pode ser entendida pela pungência como mostra sua Hushpuppy e a força dramática que encontra no aspecto conflitante criado pelo roteiro. Mesmo sua narração em off (algo que cada vez mais é usado para justificar frases de efeito irrelevantes) é necessária para o conjunto que é exposto no decorrer da narrativa. Dwight Henry também é competente na dinâmica com a filha e em exibir seus próprios problemas – aqui, acho pertinente salientar a cena em que, após ter sido “agredido” pela filha, entende-a e apenas pergunta onde ela estava, além da tocante sequência final.

É nessa química, aliás, que reside a força e a paixão com que Indomável Sonhadora vem conquistando muitos da crítica e do público. Ainda que tenha seus equívocos ou sua parcela de problemas, a ideia de abordagem Zeitlin acabou quase ofuscando suas resoluções.

                             

21 de fevereiro de 2013

Hora Mais Escura, A

(Sugiro apenas ler a crítica, após ter visto o filme)

Zero Dark Thirty, EUA, 2012. Direção: Kathryn Bigelow. Roteiro: Mark Boal. Elenco: Jessica Chastain, Jason Clarke, Jeremy Strong, Kyle Chandler, Jennifer Ehle, Harold Perrineau, Mark Strong, James Gandolfini, John Barrowman, Reda Kateb. Duração: 157 min.

Há uma cena em Argo que é extremamente audaz: quando a embaixada americana é invadida em Teerã, um militante islâmico fica furiosíssimo ao ver a foto de um de seus líderes servindo como tiro ao alvo. Ela é corajosa pela força com que nos passa uma empatia com aquelas pessoas que se sentem agredidas em suas convicções. É ainda mais impressionante, portanto, que Bigelow comece seu novo filme com duas cenas extremamente díspares entre si: na primeira, o som do horror proporcionado no dia 11 de setembro, a impotência diante da tragédia; na segunda, a perda de controle dos americanos em torturas absurdamente desumanas e que nos fazem criar de imediato uma simpatia lógica com o torturado. Mesmo que esse conflito ideológico não seja tão frequente em A Hora Mais Escura, a diretora já mereceria aplausos apenas por evidenciar até onde vai uma sociedade quando se sente acuada ou com puro temor de seus “grandes inimigos”.

Escrito pelo excelente Mark Boal (que já tinha ressaltado o seu talento em Guerra ao Terror), a história é basicamente concentrada nas buscas incessantes por Maya (Chastain), uma agente da CIA, que tem como principal missão capturar o líder da Al Qaeda, Osama bin Laden.

Nesta linha de raciocínio, o roteiro e a montagem de Goldenberg e Tichenor (indicados ao Oscar) aplicam seus esforços em mostrar a evolução de Maya ao decorrer das investigações, paralelamente com missões frustradas, depoimentos, vídeos, fotos, ataques e relações com os colegas que a cercam. Por isso, observamos a personagem com problemas para dormir, passando dificuldades para entrar na embaixada, ouvindo pela primeira vez o nome Abu Ahmed e seguindo a pista (“É o mensageiro em que ele confia!”) e assistimos a outras missões que nos levarão até o principal foco. As divisões acabam sendo muito bem estruturadas: por exemplo, a cena em que Chastain confronta um radical o ameaçando só surte o efeito desejado porque já sabemos o que ocorre nos galpões secretos da CIA no Paquistão, ficando mais fácil compreender o seu medo. Do mesmo modo, é notável o instante em que os agentes começam a perder a cabeça ao mesmo tempo – aliás, curioso notar a “humanidade” de Dan sendo retratada enquanto este dá comida a símios (simbolizando um aspecto amoroso enjaulado) e faz com que ele desista dos interrogatórios justamente quando ele perde essa válvula de escape.

Além disso, o brilhante roteiro de Boal não oferece saídas fáceis: se qualquer outro roteirista poderia usar “tantos dias depois” para pular a ação da trama, Boal opta por Maya cobrando a demora em agir do governo americano. Não apenas isso, o roteiro denuncia particularidades de cada um dos personagens ao longo da trama – o melhor exemplo, provavelmente, é Jessica (Jennifer Ehle, excelente!). Neste caso, analise a aparentemente simples conversa entre Maya e Jessica durante um intervalo e o diálogo que iniciam: a divergência delas acerca do radicalismo, uma acredita nos ideais do islã e a outra afirma que tudo gira em torno do dinheiro. Para depois, visualizarmos a empolgação de Jessica durante uma importante missão, após apostar no dinheiro para convencer um radical a mudar de lado. Nada surge gratuito, nem mesmo o discurso de Obama, que invade uma sala silenciosa afirmando que ninguém está sendo torturado no Paquistão.

A direção de Bigelow, por outro lado, começa bastante irregular até encontrar o ritmo desejado. Como em seu filme anterior, Guerra ao Terror, a diretora encontra dificuldades em corroborar o clima tenso e inseguro que as pessoas estão vivendo, ainda que aqui e ali recorra a tiroteios e explosões em ônibus ou hotéis. Igualmente, explora planos aéreos, omite o rosto de personagens sem razão visível, nunca deixa as conversas durarem muito tempo e peca por usar demais a câmera subjetiva. Em contrapartida, as corajosas decisões narrativas de Bigelow ofuscam sua falta de talento para enquadramentos elegantes, inclusive, jamais tratando sua história de maneira maniqueísta – o que já é surpreendente. Logo, cenas como a de Maya pedindo uma garrafa de vinho enquanto vê um bombardeio na tela do computador ou a bandeira americana coberta por um véu negro ou os soldados brincando de forma trivial antes da missão para depois assassinar uma mulher a sangue frio nascem de forma impactante. Do mesmo modo, a lágrima que corre do olho do torturado na sequência inicial ou Bradley visto de frente no momento em que a televisão está ao fundo noticiando os atentados, como se aquilo estivesse pesando em suas costas, são triunfos da diretora.

E criando uma personagem que vive apenas de seu trabalho, sem contato com a família, a única pista que temos sobre a vida pessoal de Maya é quando vista numa foto de computador com a filha, Chastain é eficiente na forma gradual com que vai mudando de atitude (“não como fora!”). Se antes engolia seco e tentava desviar a atenção das torturas, noutro momento ela é bem mais confiante e fria nas abordagens – portanto, o minuto em que ela olha para seu próprio reflexo no espelho e não se reconhece mais é bem interligado. (Não se pode deixar de citar também a mudança de figurino, repare como Maya passa a usar roupas mais folgadas no decorrer da trama e como Dan é enfatizado no prédio da CIA nos EUA). Além do mais, sua crescente segurança é desenvolvida sempre de forma natural, não ficando inverossímil, portanto, quando ela é a única a confrontar o chefe com o olhar ao passo que todos os seus colegas mantém-se acuados. Contudo, suas explosões nunca são apropriadas – analise o temperamento dela perante Bradley e como não consegue ser intimidador ou forte o suficiente para acreditarmos no quanto ela quer aquilo; pior, pontua os gritos, como se tudo fosse calculado ou estivesse no script.

Finalmente, A Hora Mais Escura, justifica todas as suas indicações ao Oscar em sua melhor cena. Salientando a ansiedade daquelas pessoas durante a “visita” de um radical que pode ajudá-los nas buscas por Bin Laden, Bigelow, Boal, Goldenberg e Tichenor não dão nenhum tiro fora do alvo. Desde os suspiros de Jessica, passando pela garrafa de água nas últimas gotas, todos sentados cansados de esperar e o gato preto cruzando a estrada, até culminar no sorriso que desaparece com o árabe sussurrando suas últimas palavras – algo que funciona como uma sinfonia. Uma orquestra que até não contava individualmente com os melhores músicos do planeta, mas que juntos chegaram ao melhor trabalho possível.

     

8 de fevereiro de 2013

Voo, O

Flight, EUA, 2012. Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: John Gatins. Elenco: Denzel Washington, Kelly Reilly, John Goodman, Bruce Greenwood, Don Cheadle, Tamara Tunie, Nadine Velazquez, Brian Geraghty, Melissa Leo. Duração: 138 min.

Há uma mensagem presente em O Voo que nos é atirada no decorrer da narrativa: a influência divina e a capacidade humana. Até quanto a intervenção do homem auxilia vidas em jogo e até onde a consequência de seus atos terão reflexos nessas ações. Whip Whitaker, que puxa esse gancho, é um dos melhores pilotos do país e fica claríssimo conforme vamos sendo inseridos no clima da aterrissagem; porém, uma pessoa altamente problemática que vive sua vida apenas por injeções de ânimo momentâneas (desde bebidas até cocaína). Não cabe a nós julgar a tragédia aérea em si, mas o comportamento de um dos principais envolvidos nela. 

Escrito por John Gatins (indicado ao Oscar por seu trabalho), Whip (Washington) é um piloto de aviação que consegue salvar 96 pessoas das 102 que estavam presentes durante uma tragédia área provocada por falhas no avião. O problema é que o piloto estava sob o efeito de drogas e álcool e terá que passar por uma extensa investigação para provar se é ou não uma das causas do desastre.

Nesta perspectiva, Zemeckis preocupa-se em demonstrar o estado caótico em que seu protagonista se encontra desde o princípio – logo, evidencia um quarto de hotel sujo, repleto de bebidas, pontas de cigarros e uma mulher nua ao seu lado, enquanto ouvimos a decolagem de um avião lá fora. Demonstrando um controle sobre as particularidades de Whip que o roteiro não tem. Da mesma forma, é eficiente ao usar a grua nunca em uso excessivo ou quando procura sublinhar o estado elétrico em que Whip se encontra (depois de cheirar cocaína, a câmera inquieta é bem pertinente). Ainda, acha tempo para ser sutil nas reações de seus personagens. Neste caso, observe o suspiro aliviado de um garoto que claramente está com medo das turbulências durante o voo ou no close que mantém em apenas um olho de Whip no momento em que este recebe as notícias do ocorrido. Ali vemos pessoas ao seu redor analisando cada reação sua, ao passo que somos movidos apenas pelo ponto de vista do protagonista.

Seu ponto alto, além disso, sucede-se em duas cenas importantíssimas: na primeira, o acidente é construído de uma forma ímpar, com cortes feitos sob medida para trazer ritmo e tensão surpreendentes (o silêncio que antecede a batida é revelador); na segunda, sustenta uma grande apreensão quando Whip tem que se decidir sobre beber ou não uma pequena garrafinha de álcool. O instante em que a bengala do piloto serve como uma divisória entre ele e Hugh Lang também é admirável. Igualmente, é sábio na forma como se aproxima e se afasta de seus personagens – analise como a câmera vai afastando de Whip na medida em que vemos sua embriaguez e quando se aproxima dele noutro momento e se afasta de Nicole.

Por outro lado, se Zemeckis parece voltar à boa forma de antes, o roteiro de Gatins é uma completa e desinteressante bagunça. Tentando sabotar até mesmo os belos momentos em que os personagens se confrontam sobre suas crenças (e o momento em que Whip se entrega para uma oração só não é pior por Washington passar seu sentimento no olhar), Gatins tenta ensaiar um duelo entre duas concepções que nunca surgem adequadas ao que realmente estamos olhando: uma pessoa alcoólatra que terá que enfrentar as consequências. Nem mesmo conseguindo imprimir a aceitação religiosa de Whip, o roteirista também derrapa na construção convencional e amedrontada de seu principal personagem – o que dizer, por exemplo, quando ele se mostra arrogante e nem um pouco assustado com o processo e minutos depois corre amedrontado para o velório de Trina para pedir favores.

Aliás, a cena só é ambígua, mais uma vez, pelo talento como Denzel Washington aborda Margaret. Seus desejos nunca ficam realmente claros: se ele está apenas no local para pedir para a amiga mentir a seu favor ou se por devoção a sua colega/amante da tripulação. Assim, o ator, com o amparo de Zemeckis, obtém o carinho e a preocupação do público com suas ações. Se o vemos num estado pecaminoso ao redor de bebidas dormindo no chão, acolhemos mais tarde sua melhora e ficamos receosos com o que pode acontecer com ele solitário no quarto de um hotel mais uma vez.

E se o roteiro não reserva tempo para a dinâmica familiar, explorando apenas telefonemas desnecessários e uma ida, bêbado, a casa da ex-mulher, compete a Washington a tarefa de ressaltar o amor pelo filho em situações pontuais. Note como o ator só chora depois do acidente quando ouve o nome do rapaz pela primeira vez. Entretanto, se Kelly Reilly nunca parece à vontade ou apropriada à trama – veja como em determinado momento ela nem parece ter sido viciada –, sua introdução é ainda mais sem propósito; servindo apenas para atrasar mais a ação que ocorrerá em segundos.

Contando com uma indicação ao Oscar no mínimo a ser contestada, no final do longa-metragem, todos os esforços de Denzel Washington e Robert Zemeckis para tornar a obra uma verdadeira análise humana não são em vãos. Ainda que não seja suficiente para retirar todo o gosto amargo deixado. E é na visão afetada pelo clima que encontra a sua frente, permeada por tempestades e trovões, para depois encontrar um céu mais límpido no horizonte, que está um perfeito reflexo tanto da história do filme quanto de sua produção.

6 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis

Les Misérables, Inglaterra, 2012. Direção: Tom Hooper. Roteiro: William Nicholson, baseado no musical idealizado por Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, que se fundamentaram no romance de Victor Hugo. Elenco: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne, Samantha Barks, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter, Aaron Tveit, Daniel Huttlestone. Duração: 158 min.

Existe uma predisposição a odiar cada nova obra de Tom Hooper desde que este ganhou o Oscar de David Fincher no ano de 2011. Já se criam suposições sobre o longa-metragem antes mesmo dele chegar as telas de cinema e procura-se erros por antecipação. Em seu novo filme, Hooper certamente é responsável por grande parte dos erros, mas também pelas irretocáveis decisões narrativas que confirmam Os Miseráveis como uma obra que funciona tanto como homenagem ao famoso musical quanto como algo belissimamente atuado e concebido.

Escrito pelo roteirista William Nicholson (Gladiador), que se baseou no musical idealizado por Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, fundamentados no romance de Victor Hugo, a história é basicamente dividida em duas tramas diferentes: na primeira, acompanhamos Jean Valjean recém-saído da prisão que era comandada pelo inspetor Javert e a de Fantine, que para sustentar sua filha se sujeita a todos os tipos de humilhações para ganhar alguns trocados; na segunda, a tentativa de uma revolução francesa.

Criando previamente duas decisões narrativas que auxiliam a história e as atuações (que transformam os sentimentos e emoções em algo muito mais crível), Hooper é inteligentíssimo a filmar seus personagens basicamente em closes constantes – assim, tornando-nos mais íntimos das suas vidas e sofrimentos. Além disso, com a determinação de alcançar uma honestidade nas interpretações das canções do musical, o diretor opta acertadamente a não interferir na trama gravando as vozes dos atores em estúdio – algo que, ao mesmo tempo em que prejudica alguns atores a atingir as notas (Russell Crowe em Stars), transforma as reflexões cantadas em algo muito mais intenso e humano.

Da mesma forma, suas elipses oferecem uma elegância que a maioria de seus outros enquadramentos não parece ter – neste cenário, aliás, analise como Hooper parece não ter ideia de quais tipos de planos irá utilizar, criando-se, assim, o ponto mais falho do longa-metragem. Continuando nesta linha de raciocínio, o diretor assemelha-se a um garoto emergente do colegial que viu um amontoado de enquadramentos e planos que considerou bonitinho e quis utilizar tudo isso em um filme seu, mesmo que eles sejam completamente inadequados para o que se sucede na trama. Por outro lado, mesmo com esses percalços estéticos, Os Miseráveis conta com uma excelente produção – desde o design arquitetado por Eve Stewart e Anna Lynch-Robinson (a cena na prisão é belíssima) até a mixagem de som.

Ofuscando quase tudo que poderia ser enquadrado como algo vergonhoso, o elenco ainda cria seres humanos com particularidades dúbias e que criam uma emoção que talvez o roteiro de Nicholson não apresentasse por si só. Hugh Jackman, assim sendo, faz uma das melhores atuações de sua carreira ao compor na figura de Jean Valjean alguém em constante conflito e que encontra seu ápice na comovente reflexão sobre si mesmo em uma capela ou na inclassificável interpretação de “Who Am I”, que – como se não bastasse – se repete no decorrer da narrativa. Da mesma forma, assistimos a sua frustração e genuinidade quando se depara pela primeira vez com o jovem Marius, culminando em mais uma tocante canção.

E se o filme perde um pouco o ritmo nesta segunda parte, graças às incursões deslocadas de Cohen e Carter, Samantha Barks quase rouba a cena com uma personagem extremamente ambígua e interessante – mesmo que ande sempre as sombras do seu amor, seu maior momento é na cumplicidade com Marius quando está à beira da morte. Russell Crowe também é comprometido com seu Javert e, mesmo que o roteiro não arranje tempo para aprofundar um pouco mais em seu caráter (soando superficial algumas vezes), através de seus olhares, ao decorrer do longa-metragem, consegue se estabelecer como um sujeito instigante. Mas é Anne Hathaway, mesmo com pouco tempo de cena, que deslumbra em seu impecável desempenho. Criando uma moça com a complicadíssima tarefa de mostrar toda a sua transformação em escassas cenas, a atriz deixa toda a amargura, rancor e frustração com a vida para uma performance impressionante em "I Dreamed A Dream". Neste caso, observe a raiva com que ela articula cada frase que profere ou os olhares suplicantes de atenção para que algo maior se manifeste ao seu favor.

Por fim, nada consegue afastar dos meus pensamentos que se Hooper fosse apenas um consultor narrativo ou mais equilibrado na direção, certamente, o filme seria mais abraçado do que está sendo. Afinal, ele é um diretor que já proporcionou obras televisivas excepcionais, como Longford ou a minissérie John Addams, mas que clama para que a mesma excelência e moderação apareçam nos cinemas. Quem sabe, algum dia, seja Hooper o nome inquestionável das premiações.

                                         

4 de fevereiro de 2013

Lado Bom da Vida, O

Silver Linings Playbook, EUA, 2012. Direção: David O. Russell. Roteiro: David O. Russell, baseado no livro de Matthew Quick. Elenco: Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Robert De Niro, Jacki Weaver, Chris Tucker, John Ortiz, Julia Stiles, Anupam Kher, Brea Bee, Shea Whigham. Duração: 122 min.

Boa parcela dos indicados ao Oscar de 2013 são filmes que abordam temas relevantes e que nas mãos certas renderiam narrativas ambiciosas e marcantes. Só que ao mesmo tempo em que temos obras como O Mestre (do diretor Paul Thomas Anderson), também somos “presenteados” com obras infantis e inoportunas, como o novo filme de Spielberg, Lincoln. O Lado Bom da Vida fica na linha tênue entre os dois – mostrando que pode versar com uma certa profundidade em momentos pontuais, mas que também se rende ao óbvio em outros tantos.

Escrito e dirigido pelo eficiente diretor David O. Russell (O Vencedor), baseado no livro de Matthew Quick, o filme conta a história de Pat (Cooper), que foi internado numa instituição psiquiátrica, após encontrar sua esposa com o amante no chuveiro de sua casa, e tenta se reestabilizar na vida. Explosivo, inconsequente e com diversos problemas familiares, Pat ainda está apaixonado pela esposa e precisa entregar uma carta pedindo o seu perdão e evidenciando sua melhora. Assim, encontra na figura da igualmente problemática Tiffany (Lawrence) sua principal “ferramenta” de ajuda para todos os seus problemas.

Mas é não permitindo seu público a pensar por si mesmo e abraçar a história crível que está visualizando na tela que O. Russell encontra o seu maior problema. Indicando cada situação como se fosse um dicionário explicando palavra por palavra para o leitor, o diretor investe em diálogos expositivos e momentos óbvios que soariam muito melhor se fossem apenas sugeridos. Em um determinado instante, por exemplo, a personagem de Lawrence, depois de confessar toda uma ocasião dramática intensa, chega a exclamar: “Isso é um sentimento”. Além disso, emprega com deselegância travellings circulares sem nenhum sentido a todo o momento (desde uma simples conversa até passagens ao redor do rosto de Cooper, algo que ocorre dezenas de vezes no longa) e utiliza simbolismos evidentes com frequência (Pat vestindo-se com um saco de lixo é o mais tolo deles). Como se não bastasse, ainda, joga suas subtramas para escanteio quando acha cômodo – um ótimo exemplo é o completo esquecimento das sessões de terapia com o psiquiatra ou a questão dos remédios afetarem o seu comportamento. 

Em contrapartida, O. Russell encontra mais uma vez substância no entrosamento de seu elenco e na naturalidade com que extrai esses momentos. Nesta perspectiva, opera de forma sábia o timing das cenas e as posições de cada personagem na narrativa (observe o momento em que De Niro está apostando algo com Randy e Pat e Tiffanny brigam fortemente atrás). Do mesmo modo, a cena, em que Lawrence se arrepende de ter se fingido de vítima quando as pessoas e a polícia abordam Cooper, é hábil em provar o conflito que Pat está vivendo dentro de si mesmo. 

E é contando com uma química fortíssima entre os dois protagonistas que o filme transmite alguma excelência. A decisão de colocar Bradley Cooper, neste panorama, como um jovem problemático e que se vê como um fardo para a família/sociedade soa apropriadíssima. O ator consegue transmitir com sensibilidade cada aspecto frágil e culpado de seu personagem, mesmo que O. Russell às vezes tente sabotar isso. (Até agora tento entender a necessidade de focar a aliança de Pat numa das sessões – sendo que ela já havia sido visitada outras vezes –, algo que é mostrado muito mais natural depois, quando ela não está mais lá no clímax final).

Jennifer Lawrence, da mesma forma, constrói uma personagem bastante imaginável e com problemas verossímeis: suas explosões são sempre correspondentes ao caso vivido e demonstra fragilidade pela primeira vez no momento que percebe estar apaixonada. Aliás, a cena da dança – em que apenas com um olhar e tremer de lábios imprime a sensação de excitação com aquele momento – talvez seja minha favorita com os dois. E se a indicação de Jacki Weaver ao Oscar é incompreensível e absurda (a não ser que atuar seja apenas aparecer chorando trêmula a cada cena), Robert De Niro extrai o melhor de um pai que tenta uma reaproximação com seu filho. Comunicando-se por metáforas para não sublinhar de forma clara os seus sentimentos, uma das cenas mais fortes é aquela em que admite ao filho, com os olhos marejados, o período em que estão vivendo. 

Ainda que pareça disposto a escancarar cada aspecto de seu filme sem deixar no ar qualquer tipo de aprofundamento, a verdade é que O. Russell tenta nos mostrar uma obra que foge do cinismo tradicional dos atuais filmes do gênero e almeja algo com apenas um final feliz, sem duplas interpretações. E isso acaba sendo o maior acerto e falha de seu novo filme.