29 de outubro de 2013

O Conselheiro do Crime

The Counselor*, EUA/Inglaterra, 2013. Direção: Ridley Scott. Roteiro: Cormac McCarthy. Elenco: Michael Fassbender, Javier Bardem, Cameron Diaz, Penélope Cruz, Brad Pitt, Bruno Ganz. Duração: 117 min.

Querendo se afastar cada vez mais do seu passado de tramas fantásticas, como Alien ou Blade Runner, Ridley Scott parece estar no meio de uma autodescoberta. Não se reconhece mais, não possui uma assinatura e surge tão perdido quanto os seus novos filmes. O Conselheiro do Crime não faz exceção à regra. Num thriller que carece de alma e profundidade, além de extremamente misógino, é difícil para o espectador compreender uma mensagem. O que o longa quer ser? Algo voltado ao erotismo, como De Palma tentou sem sucesso em Passion? É o que sugere a cena entre Penélope Cruz e Cameron Diaz ao redor de uma piscina, além do próprio prólogo que mostra Fassbender e Cruz na cama. Ou uma espécie de neo-noir, com Diaz como femme fatale? Algo mais próximo da realidade, mas, ainda assim, com muitas falhas.

Não há uma trama decidida no filme. Tudo parece muito solto e demasiadamente enigmático. O roteiro do escritor Cormac McCarthy, neste caso, estabelece uma série de pistas e recompensas convencionais para deixar a metade final com aparência de estrutura inteligente, porém a direção de Scott pouco acompanha essa atmosfera. A tensão é bastante pontual e dá as caras somente quando estamos diante de uma morte iminente. Quando sabemos que há um dispositivo tecnológico que sufoca a pessoa num simples contato com a pele, por exemplo, fica claro que testemunharemos algum fim dessa forma na narrativa; assim como quando somos apresentados a um diálogo sobre snuff film. O Conselheiro do Crime acaba sendo mais uma tentativa frustrada de um diretor que gostaria de retornar à velha forma, mas que não consegue ser no mínimo interessante há mais de 10 anos. Uma pena.


*Crítica publicada originalmente no Diário Catarinense

                                     

25 de outubro de 2013

Dragon Ball Z: A Batalha dos Deuses

Doragon Bõru Zetto: Kami to Kami, Japão, 2013. Direção: Masahiro Hosoda. Roteiro: Yûsuke Watanabe, baseado no manga de Akira Toriyama. Dublagem brasileira: Wendel Bezerra, Alfredo Rollo, Vagner Fagundes, Luiz Antônio Lobue, Fábio Lucindo, Márcio Araujo, Alexandre Marconatto, Vinny Takahashi, Fátima Noya, Rita Almeida, Angélica Santos, Gileno Santoro, Tânia Gaidarji, Raquel Marinho, Eleonora Prado, Guilherme Lopes, Wellington Lima, Melissa Garcia, Rodrigo Andreatto, Élcio Sodré, Jonas Mello, Marcelo Pissardini. Duração: 85 min.

Ainda que tenha acabado há muitos anos, Dragon Ball carrega uma legião de fãs espalhada pelos quatro cantos. E é guiando-se nessa linha nostálgica, sendo fiel ao cultuado desenho e capturando a sua aura clássica, além de se permitir a utilizar diversos flashbacks do desenho clássico, que o diretor Hosoda acaba encontrando os principais acertos e erros de uma narrativa apaixonada por aquele mundo – quer gostemos dele ou não.

Escrito por Yûsuke Watanabe, baseado na história pensada por Akira Toriyama (que também produz), o filme acompanha o despertar de um deus destruidor de mundos que se encaminha para a Terra quando descobre que seu antigo aliado, Freeza, foi derrotado por um Super Sayajin chamado Son Goku. A princípio, Bills, a tal divindade, quer apenas conhecer o homem que deu fim à vida do poderoso Freeza, mas logo fica interessado na possibilidade do surgimento de um deus Super Sayajin.

Introduzindo flashbacks naturais que colaboram para situar o espectador dentro da estrutura, Hosoda – sabendo que enfrentará as diversas limitações da atmosfera mais clássica – procura extrair graça de suas principais batalhas no decorrer da narrativa e, assim, tirar qualquer tipo de pretensão de uma trama em que um alienígena pode simplesmente se transformar em uma divindade por alguns minutos. A maneira como Bills é abordado, por exemplo, é quase tragicômica, pois estamos diante de uma figura intocável e indestrutível que apenas quer uma boa batalha. A sua irritação aparentemente descontrolada é de um guerreiro que não encontra mais razão para nada. Ainda que o roteiro de Watanabe encontre dificuldades em revelar esses aspectos, nunca economizando nos estereótipos e sendo explicativo demais durante todo o percurso (“Você está sendo sarcástico, certo?”), os planos em que vemos o tal deus são sempre divertidos por salientar o clima totalmente nonsense de tudo aquilo – basta observar o sinal de aprovação de Bills ao ser indagado de sua origem.

O diretor, além disso, utiliza-se de uma festa para estabelecer os seus heróis e aposta em gags visuais e sonoras, como o suor excessivo e a chegada de algum personagem sendo pontuada para evidenciar o clima infantil da trama. Boo era um vilão que transformava os seus inimigos em biscoitos para comê-los. Existe essa ingenuidade intrínseca à trama: a humilde empolgação pela luta, as crianças ganhando palmadas quando tentam lutar, o pensamento em off, entre outros. Por outro lado, nesta mesma procura pelo tom juvenil, Hosoda acaba pecando nos maiores erros do desenho antigo: os passos cautelosos, respirações pesadas, as risadas e murmúrios desconcertantes, a demora da ação, as desengonçadas lutas no ar, os cortes imprecisos, sem timing, planos sem função aparente e assim por diante. Falta tensão nas sequências amenizadas pelos cortes secos e a batalha entre Bills e Goku nos céus é indecifrável. Da mesma forma, a insistência em planos detalhes e closes, além de seus planos centrais e de aproximações, num trabalho extremamente burocrático, acentua esse incômodo.

Todavia, a despretensão de uma trama que investe no nonsense ofusca boa parte dos erros mais óbvios. A briga de Boo com Bills por um pudim, o fato de Goku conseguir se tornar um deus e a destruição iminente da Terra porque alguém a achou tediosa acabam soando eficientemente complementares à bobagem divertidíssima de Hosoda. E sou capaz de apostar que os fãs do desenho não esperavam menos.

                                 

23 de outubro de 2013

Kick-Ass 2

Idem, EUA/Inglaterra, 2013. Direção: Jeff Wadlow. Roteiro: Jeff Wadlow, baseado nos quadrinhos de Mark Millar e John Romita Jr. Elenco: Aaron Taylor-Johnson, Chloë Grace Moretz, Morris Chestnut, Clark Duke, Amy Anzel, Claudia Lee, Augustus Prew, Donald Faison, Garrett Brown, Christopher Mintz-Plasse, John Leguizamo, Yancy Butler, Robert Emms, Lindy Booth, Daniel Kaluuya, Olga Kurkulina, Jim Carrey. Duração: 103 min.

Kick-Ass 2 carrega uma conhecida abordagem de sequências: garantir na repetição da fórmula do primeiro filme elementos que dão uma sensação confortável e aparente de certa profundidade nos protagonistas. Por exemplo: alguém deverá morrer para trazer algum tipo de definição para um deles, as sequências de ação irão requisitar mais sanguinolência e assim por diante. É uma pena que a escolha para dirigir a continuação, portanto, seja o incapacitado Jeff Wadlow, que transforma uma bobagem divertida em um condensador de aspectos condenáveis e frustrantes.

Escrito pelo próprio Wadlow, que tem no currículo filmes como Cry-Wolf e Caçados, a história regressa para pouco tempo depois do final do primeiro filme. Mindy passou a morar com o detetive Marcus Williams, quem não gosta nada do passado heróico da garota e a força a se enturmar entre os “mais privilegiados” do colégio. Enquanto isso, Dave começa a treinar técnicas de combate e entra para um grupo chamado Justiça para Sempre, coordenado pelo ex-mafioso Coronel Estrelas e Listras (Carrey), que utiliza um código moral muito diferente daquele de Big Daddy.

E é exatamente nesse código duvidoso que começamos a nos divertir menos com a narrativa. Diferente do primeiro filme, onde a violência desregrada era um fator claro na realidade dos personagens, a política anacrônica do olho por olho e dente por dente é extremamente falha por já apontar que os próprios “heróis” acabam sendo os responsáveis por muitas das situações que são originadas. Dando-se conta disso, aliás, Wadlow até tenta criar algum tipo de filosofia existencialista para o grupo ao fazê-los refletir sobre estar no mundo real, não nos quadrinhos. Mas isso apenas acaba indicando o quanto o diretor está completamente perdido em sua estrutura – e basta observar o clima cartunesco que cria com seus vilões, principalmente na forma preconceituosa como encara Morte Negra e Mother Russia, ou como sabota, assim, a montagem de Eddie Hamilton, que pensa na história como se fosse proveniente das HQs. Um preconceito, além disso, que tenta se imacular na forma como é expressado (“esse jeito homofóbio faz você parecer super-gay” é bem claro).

Tornando-se também explicativo demais acerca dos acontecimentos passados (“o seu pai morreu em um incêndio. Não, ele morreu pelas mãos do Kick-Ass, um assassino”) e tentando sem sucesso brincar com o caricatural – o vilão matar a mãe, utilizar uma roupa de sadomasoquismo como fantasia e se chamar de MotherFucker –, Wadlow, como citado, ainda encontra tempo para pregar contra a violência usando a própria violência. Assim, uma personagem corta a mão de um assaltante como se fosse um aviso sem nenhum tipo de remorso e até a sugestão de um pedófilo ter seu pênis cortado é levantada. Como se não fosse o bastante, o diretor acredita que mostrar cenas escatológicas em um colégio são dignas de aprofundamento. Vale destacar, inclusive, que a cena em que Mindy olha um vídeo de Union J e o diretor focaliza a sua reação sexual é tão infantil quanto a sequência de O Tempo e o Vento que mostra Cléo Pires em uma água para aliviar sua excitação.

Finalizando o terceiro ato com uma batalha entre todos os personagens vistos até então, algo que atualmente muitos filmes parecem julgar necessário, Kick-Ass 2 erra em tudo o que seu antecessor acertou. E é triste ver o que poderia surgir como uma franquia interessante se tornar algo tão assustador.

                            

21 de outubro de 2013

Tabu

Idem, Portugal/Alemanha/Brasil/França, 2012. Direção: Miguel Gomes. Roteiro: Miguel Gomes e Mariana Ricardo. Elenco: Laura Soveral, Teresa Madruga, Isabel Cardoso, Ana Moreira, Carloto Cotta, Henrique Espírito Santo, Ivo Muller, Manuel Mesquita. Duração: 118 min.

Existem três linhas bem claras que o talentoso Miguel Gomes procura estabelecer na obra-prima Tabu: a exploração, a mudança social drástica e, um fator de união entre esses dois fatores, a crise econômica portuguesa. Não à toa, o diretor divide em duas partes o seu longa-metragem: o paraíso e o paraíso perdido – num contraste social claro acerca da condição de uma simples senhora de idade: Aurora, que conta os seus dias até, finalmente, poder descansar em paz.

E é a partir da melancolia de um paraíso perdido, onde Aurora vive a base de comprimidos para dormir e um contraluz indica que a esperança só é vista do lado de fora daquele “lar”, que Gomes escancara a condição infeliz de nossa protagonista. A pergunta é óbvia: como essa mulher pode ter chegado a esse ponto de depressão e auto-opressão? Nesse aspecto, a fotografia em P&B de Rui Poças apresenta eficientemente a tristeza daquela realidade, além de realizar um contraste gritante na segunda parte da narrativa, onde faz questão de mostrar, aos poucos, a ausência de cor e torna a imagem mais granulada, quase em tom documental – o que oferece um grande significado com a narração em off presente nesse instante.

Miguel Gomes, por sua vez, move sua câmera quase de forma gentil, aconchegante, com planos centrais e longos, seguindo apenas os personagens. São as pessoas que importam para ele. Todas elas são complexas. Santa, por exemplo, parece-nos por momentos alguém que desperta desconfiança ao usar a filha de Aurora sempre quando deseja explicar alguma ação; porém, minutos depois, observamos a sua preocupação ao visualizarmos ela sem saber o que fazer e pedindo ajuda para Pilar (“a senhora se sente mal!”). Aliás, todos os personagens têm seus conflitos, inclusive, quem pouco aparece ou é apenas citado: como a filha de Aurora, que é dona de um ressentimento visível, pois nem ao enterro comparece; já Pilar procura alguma forma de esquecer os seus próprios problemas, concentrando-se a sua volta: o cinema é o único momento em se permite sentir suas próprias emoções. Até mesmo ao estar acompanhada nos cinemas, sente-se isolada do mundo, pois o outro dorme.

Mas é em sua crítica social que Gomes tem seus maiores acertos. Começando com a figura de um explorador, o papel do Estado, o diretor afirma que o coração humano não consegue escapar do que o espera. Logo, acompanhamos uma dança de despedida e aquele mesmo mundo – o do explorador – é refletido na sociedade atual: a selva agora é de pedra, mas a realidade é ainda mais triste; um livro de Robinson Crusoé é visto na mesa para nos lembrar desse ponto de vista, inclusive. Além disso, Miguel Gomes enquadra sutilmente um computador e várias extensões da crise econômica são notadas: vale observar uma sequência em que o diretor mostra páginas de sites discorrendo sobre comunismo, Portugal, armamento, facilidade para o crime e um jogo de paciência. Note também como ele trata de distanciar seus personagens até mesmo em um transporte coletivo – ali, a profundidade de campo ressalta que as pessoas estão vivendo isoladas uma das outras em um mesmo ambiente. Da mesma forma, no paraíso perfeito de Gomes, a sociedade é silenciosa. Apenas o som da natureza é o que importa. E é admirável a coesão constituída entre os três atos quando vemos a figura de uma empresa de exploração na segunda parte da narrativa e como aos poucos vamos começando a perceber aquela realidade sendo utilizada para fins empresariais.

É, afinal, o mundo de Aurora que vemos refletido em tela, mas podemos desvendar no processo nossas próprias raízes e sonhos – sejam individualistas ou sociais. Como a câmera em vertical aponta no terceiro ato, quando Mário (aquele que estava sempre distante da banda nos enquadramentos) se envolve em um assassinato, tudo muda. De uma forma ou de outra.
                          

16 de outubro de 2013

Elysium

Idem, EUA, 2013. Direção: Neil Blomkamp. Roteiro: Neil Blomkamp. Elenco: Matt Damon, Alice Braga, Jodie Foster, Sharlto Copley, Diego Luna, William Fichtner, Brandon Auret, Josh Blacker, Emma Tremblay, Jose Pablo Cantillo, Adrien Holmes, Jared Keeso, Faran Tahir e Wagner Moura. Duração: 109 min.

Depois de sua estreia promissora no comando de Distrito 9, Neil Blomkamp já provou que sabe criar universos caóticos, politicamente divisórios e quase primitivos. Com um agravante, achar que isso é o bastante e não ter o mesmo preciosismo técnico para suas tramas ou até mesmo para a sua direção – destacando que é um excelente argumentista, mas um realizador bastante falho.

Escrito pelo próprio Blomkamp, a história gira em torno de uma divisão de classes que ocorre em 2159. O mundo está segregado entre ricos e pobres: os ricos vivem em uma espécie de estação espacial chamada Elysium, onde as pessoas não morrem ou ficam velhas por possuir um tratamento tecnológico diferenciado; os pobres, por outro lado, continuam numa devastada Terra, onde há um grupo de rebeldes – comandado por Spider (Moura) – que tentam fugir do sistema criado pelo governo e para a tão sonhada Elysium.

Oferecendo imediatamente uma visão crítica social óbvia, com os ricos em cima e os pobres sendo deixados para viver abaixo deles, ressaltando uma própria oligarquia econômica, Blomkamp não é nada sutil em retratar cada uma de suas esferas – assim, desenvolvendo personagens irritantemente unilaterais. Max, por exemplo, “nasceu para algo único” e, portanto, está fadado a ser o salvador dos pobres: aquele que acabará com as linhas separatórias entre as duas classes. Delacourt é uma totalitária cruel que mata quem quer que esteja tentando chegar ao seu lugar longe da civilização. Nada é por acaso na narrativa, o que confronta diretamente a tentativa de soar um prenunciador natural do que está por vir – roubos, poluição e a tecnologia que nos fará refém. Até mesmo a identificação feita do governo com seus trabalhadores ganha ares de regime antissemita. Por outro lado, o roteiro tem decisões acertadíssimas, como aquela em que o Governo, evitando ao máximo o contato popular, chega ao seu limite, denunciando o seu tratamento com a classe mais baixa: você só é importante enquanto está vivo. Assim, a forma como um robô se dirige a Max, agradecendo o seu serviço e que é para ele tomar sua dose de comprimidos para mantê-lo vivo e trabalhando até a sua morte, é chocante.

Mas se Blomkamp é interessante no mundo desordenado que cria, com os próprios humanos se matando, acaba sendo bastante frustrante em como cria as suas sequências de ação. É comum, por exemplo, dezenas de cortes por minuto, o que torna tudo indecifrável. Além disso, pode-se citar o travelling incompreensível feito com rapidez durante uma luta entre Max e Kruger, que só serve como um exercício bobinho de estilo. E se o diretor surge perdido na direção, ele também acaba sendo conivente com os erros que nascem no terceiro ato. Aparentemente sem saber como lidar com o final de sua trama, Blomkamp chega a colocar o vilão de seu filme com o objetivo de conquistar o mundo, algo que, imediatamente, deveria ser banido do cinema. Ao mesmo tempo, passa a criar uma série de coincidências narrativas que desembarcarão no clímax final e diálogos tão amadores que deixariam Michael Bay orgulhoso – aliás, há de se aplaudir a seriedade com a qual Damon parece sentir uma história tão estúpida quanto a do hipopótamo.

E se Damon parece no controle automático e Alice Braga interpreta a mesma personagem de sempre, Sharlto Copley acaba roubando a cena ao criar alguém extremamente repugnante e temível nos dois primeiros atos – algo que é só ofuscado pelo destino que o roteiro experimenta para ele. Por outro lado, mesmo em um instante reprovável, avalie como ao se olhar no espelho, com uma aparência muito mais humana do que o normal, ele próprio não se reconhece. Ao passo que Wagner Moura é competente ao demonstrar a instabilidade de Spider e ao usar o humor para esconder seus maiores temores.

Ao fim, acaba sendo uma pena que Neil Blomkamp ainda não tenha encontrado a mesma excelência por trás das câmeras. Num ano medíocre para o sci-fi, Elysium vira mais uma obra de potencial deteriorada pelos esforços de seus realizadores que tentam criar algo que justifique o uso de seu orçamento. 


                               

10 de outubro de 2013

Gravidade

Gravity, EUA/Inglaterra, 2013. Direção: Alfonso Cuarón. Roteiro: Alfonso e Jonás Cuarón. Elenco: Sandra Bullock e George Clooney. Duração: 91 min.

É muito fácil imaginar Gravidade nas mãos de um diretor menos talentoso que Cuarón, e a maneira como isso influenciaria o longa-metragem. Para começar, provavelmente, observaríamos o sofrimento dos personagens na terra; igualmente, uma comemoração final, com todos festejando o resgate dos personagens. Além disso, arriscaria que a própria ação demoraria dois atos para ocorrer, a tensão tardaria a ser adicionada e a história se alongaria muito mais: focando na família, personagens escapando de um choque minutos antes e mais papéis descartáveis. E essa é a grande diferença de um filme dirigido pelo mexicano: a maneira de construir uma tensão angustiante, uma atmosfera insegura e a falta de certeza do público quanto ao que irá acontecer.

Escrito pelos irmãos Cuarón, Alfonso e Jonás, a história acompanha uma missão no espaço que é comandada por Matt Kowalski e a Dra. Ryan Stone. Após os restos de um satélite criar uma reação em cadeia de destruição pelo espaço, ambos acabam sendo os únicos sobreviventes da missão. Sem comunicação com Houston, eles buscam a sua sobrevivência guiando-se ao encontro de alguma base espacial que os encaminhe de volta para a Terra.

Criando quase que uma “dança” espacial ao acompanhar as ações de cada personagem no conserto realizado no primeiro ato, Cuarón já inicia a narrativa com um gigantesco plano-sequência que salienta precisamente a instabilidade presente no espaço. Neste aspecto, os movimentos de câmera impressionam por parecerem filmagens de um satélite: somente criando uma estabilidade maior quando se aproxima da Dra. Stone, como se demonstrasse o quão ela se sente previamente segura. Da mesma forma, Cuarón é certeiro ao mostrar o trabalho em equipe de Clooney e Bullock, destacando-os em lados opostos e apresentando o destino de cada um. Além do mais, o diretor merece os aplausos por acompanhar a tensão construída na sequência do choque com os destroços do satélite em um ponto de vista pessoal – aproximando-nos bastante do sofrimento de Stone: começando pela aproximação do close no rosto da personagem até chegar num plano subjetivo, de dentro do capacete; após isso, aliás, note que saímos do ponto de vista da personagem porque ela também está tentando sair daquela situação.

É curioso, também, algumas decisões narrativas: como focalizar o ponto de vista de Stone ao ver o dedo de Matt apontando para algo ou nos próprios símbolos que vão sendo construídos no decorrer da narrativa. Sob esta ótica, a posição fetal em que Stone se encontra ao entrar numa nave, auxiliada com a falta de gravidade, transforma-se num belo símbolo de renascimento; algo que, por exemplo, repete-se quando ela consegue colocar novamente os pés no chão – assinalando o fato de que ela está reaprendendo a andar naquele momento (o contra-plongée também retrata bem essa condição). Vale destacar, além disso, o pensamento de Cuarón em mover a câmera através das sensações vividas pelos personagens, o que se torna impactante ao experimentarmos a sensação de queda em diversas vezes ou até mesmo em refletir sentimentos – quando no afastamos de Bullock em um instante é porque ela também se vê isolada.

Por outro lado, o roteiro dos irmãos Cuarón não possui a mesma qualidade de seu espetáculo visual, pecando principalmente no terceiro ato ao criar soluções fáceis que não condizem com a tensão implantada até então. Como explicar a presença de uma alucinação ser o fator imprescindível para o destino final de Stone? Mais, enquanto algumas frases óbvias são utilizadas para descrever momentos (“A vida é impossível aqui”, “A vista é inigualável” ou “É bom estar sozinha”), é triste visualizar piadinhas deslocadas em momentos chaves: “Odeio o espaço” soa extremamente desconcertante do ponto de vista dramático. Mas isso é contornável. A perda de controle de Bullock logo depois é muito mais genuína e o próprio monólogo na cápsula espacial é comovente (“Mas vou morrer hoje”).

Bullock, aliás, que faz a melhor atuação de sua carreira ao transmitir os temores de sua personagem por meio de suas respirações pesadas e seu sentimento de impotência diante de um ambiente em que não está familiarizada. A cena em que, impaciente, busca saber onde está para mandar um sinal para Matt, quando chega a parar de respirar para isso, é impecável. Clooney, por sua vez, utiliza seu charme para trazer a personagem de Bullock de volta à realidade e aconchegá-la. Usa a sua experiência para mantê-la viva, além de interagir com ela para esquecer sua própria condição. O instante em que ouvimos sua voz admirando, pela última vez, o pôr do sol é emocionante.

Perdendo um pouco de sua estrutura na forma como o altruísmo americano é colocado, Gravidade ofusca qualquer grande erro em prol de seu visual fantástico. Emmanuel Lubezki, assim, realiza um trabalho memorável em parceria com Cuarón: desde coisas simples como a transpiração ofegante de Stone, a perda de cor da roupa espacial e a doutora cada vez mais perdida entre as estrelas ou a iluminação presente entre Matt e Stone quando se entrelaçam, passando pela espantosa sequência do nascer do sol, até chegar ao ápice das lágrimas de Bullock vindo ao nosso encontro. Uma experiência que será difícil de esquecer. 

                            

7 de outubro de 2013

O Tempo e o Vento

Idem, Brasil, 2013. Direção: Jayme Monjardim. Roteiro: Tabajara Ruas e Letícia Wierzchowski, baseado no romance de Érico Veríssimo. Elenco: Thiago Lacerda, Fernanda Montenegro, Marjorie Estiano, Cléo Pires, Zé Adão Barbosa, José de Abreu, Rafael Cardoso, Fernanda Carvalho Leite, Apolônio Cypriano, Marat Descartes, Danny Gris, Leonardo Medeiros, Leonardo Machado, Vanessa Loés, Fernanda Moro, Miguel Ramos, Janaína Kremer Motta. Duração: 127 min.

Depois de sua estreia condenável em Olga, era de se esperar que Jayme Monjardim não adotasse mais a sua conhecida estrutura novelesca e fosse mais seguro na maneira como apresenta a sensibilidade dramática. Todavia, já em seu segundo filme, fica claro que o diretor não possui nenhuma pista sobre o que está fazendo e, caso fosse um financiador de O Tempo e o Vento, eu pediria para retirar o nome da minha empresa imediatamente dos créditos.

Escrito por Tabajaras Ruas (o responsável pelo argumento de A Antropóloga) e Letícia Wierzchowski, baseado no romance de Érico Veríssimo, a história começa do ponto de vista de Bibiana Terra (Montenegro), que, em seus últimos dias, começa a lembrar da história de amor que viveu com o Capitão Rodrigo (Lacerda). A partir daí, o roteiro explora o começo da família Terra e o início do conflito com os Amaral no município de Santa Fé/RS, enquanto ao fundo também acompanhamos a história gaúcha; dos conflitos entre Império e farrapos.

Não estabelecendo um estilo claro desde o princípio, a confusão narrativa de Monjardim é vista desde o primeiro minuto do longa-metragem, ao notarmos uma cena em primeiríssimo plano se transformar, em menos de dois segundos, num establish shot. Da mesma forma, ele não esquece a natureza novelesca e, provando ser um péssimo diretor de atores, procura destacar cada expressão furiosa ou estupefata de seus personagens; além de, noutras oportunidades, criar uma atmosfera breguíssima em que a luz de uma vela fica entre um beijo. Além do mais, o diretor parece estar sendo dirigido (com o perdão do trocadilho) por seu diretor de fotografia: apenas isso para explicar as inúmeras cenas em que tenta filmar os orvalhos da manhã sem intenção alguma a não ser de estilo ou em muitas cavalgadas sem propósitos.

Falando nisso, Affonso Beato, aparentemente, acredita que fotografar tudo em contraluz é uma decisão técnica maravilhosa e suficientemente interessante para destacar os pampas gaúchos. Assim, Beato nem liga para o contraste deselegante que cria em determinado instante ao passar do filtro azul para o amarelo sem qualquer justificativa. A montagem, igualmente, é reprovável em como lida com os flashbacks, em suas teimosas voltas no tempo – como se quisesse confirmar que se trata de Bibiana narrando para o Capitão –, além de suas elipses inorgânicas (uma reação de Cléo Pires ocorrida cinco anos depois do acontecido é constrangedora). Como se não fosse bastante, o roteiro de Tabajara Ruas e Letícia Wierzchowski até tenta ir por um viés mais feminino, refletindo o ponto de vista de Bibiana, mas como era de se esperar de uma 27ª versão de roteiro, as cenas e os pensamentos ficam demasiadamente soltos na história e tudo parece ser feito às pressas. Não que isso evite sobrar tempo para as piadas infantis, por exemplo, como a inconveniente: “(...) sempre desconfiei de homem que toca violão. É? Eu conheci muito cafajeste que não tocava”.

Nesta perspectiva, fica dificílimo o elenco conseguir se diferenciar, especialmente quando Thiago Lacerda está focado em ser um personagem unilateral – o malandro invariável e arrogante – ou Leonardo Medeiros em ser o típico vilão traído. Cléo Pires, por sua vez, até consegue irradiar uma dramaticidade adequada, mostrando que está realmente sentindo a frustração e agonia de sua personagem, mas é ofuscada pela maneira como o roteiro tenta expô-la. (Volto a me perguntar se a atriz não teve crise de riso ao gritar que mataram o seu amado apenas anos mais tarde) E se Fernanda Montenegro surge desconfortável ao dividir a tela romanticamente com alguém muito mais novo que ela, o destaque acaba sendo o gaúcho Zé Adão Barbosa, que oferece uma profundidade muito maior como o “único” homem de fé da região de Santa Fé – analise que, ao mesmo tempo em que não se atreve a indicar uma inimizade com os Amaral, estabelece um sentimento paternal com relação ao Capitão Rodrigo. A cena dos dois discutindo sobre o que fariam caso fossem criadores do mundo é a melhor cena do longa.

Ainda que mostre superficialmente o regionalismo gaúcho (nos duelos, o churrasco de chão, a honra familiar e as danças) e a reconstrução de Santa Fé feita em Bagé seja aplausível, O Tempo e o Vento acaba sendo quase um prelúdio de uma futura minissérie da Globo, como as próprias cenas acovardadas de batalha ou o estupro nos mostram. Apontando para todas as direções, Monjardim finaliza sua obra quase de maneira espírita – ressaltando Bibiana e Rodrigo cavalgando juntos em direção ao pôr do sol: algo que até cria uma coesão admirável, principalmente ao avaliarmos que a sombra dos dois forma uma pessoa que lembra muito Pedro índio (o começo de tudo), mas apenas sublinha que tudo não passou de um acaso, assim como os outros acertos do filme.