19 de junho de 2014

Lobo Atrás da Porta, O

Idem, Brasil, 2013. Direção: Fernando Coimbra. Roteiro: Fernando Coimbra. Elenco: Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabiula Nascimento, Thalita Carauta. Duração: 100 min.

Há uma fábula gaimaniana que aponta a descrença dos familiares de uma pequena garotinha quando esta afirma ter ouvido lobos dentro das paredes. “Não, só podem ser camundongos”, diz o pai; “ratazanas imensas”, sugere o irmão; mas a menina e nós sabemos que na verdade os barulhos são o que indicam ser: lobos. Eu me lembrei deste conto infanto-juvenil quando assistia ao filme de Fernando Coimbra, O Lobo Atrás da Porta. Não pela similaridade do nome ou pelo fato de ser uma história infantil (pois não o é), mas pela metáfora semelhante. O longa-metragem brasileiro não traz uma narrativa de difícil entendimento ou com um clímax final impensado, muito pelo contrário, ele trabalha uma trama simples desenhada desde o princípio de forma irrepreensível, combinando o que poucas vezes observei no cinema: uma reconstituição singela de uma investigação policial.

Porque conduzindo o seu roteiro como se ele fosse um boletim de ocorrência, Coimbra faz seu investigador ouvir todas as partes envolvidas no caso, checar as informações estranhas que são repassadas e começar a desenvolver sua tese, como o próprio espectador. Assim, acompanhando o passo a passo e sem conhecer profundamente cada um daqueles indivíduos, é nossa obrigação, bem como a do delegado, compreender as intenções de cada um deles e quem afinal está ou não mentindo. Isto é o aspecto mais brilhante do filme, já que sem a noção prévia dos personagens, não temos a mínima noção de qual o caráter de cada um. A montagem, além disso, esforça-se para passar exatamente essa lógica: construindo cada história com a visão da pessoa que a conta – se a de Bernardo, que só mantinha o caso por desejo carnal, inicia num quarto de motel com ela nua; a de Rosa começa por quando se conheceram, mostrando o quão a história deles é mais importante para ela. Da mesma forma, ela se lembra de coisas simples e instantes genuínos de prazer, como eles divagando sobre o futuro numa tarde na praia; ele somente indica que Rosa usava o sexo para mantê-lo, esquecendo-se de sua própria culpa.

Ao mesmo tempo, enquanto a montagem assegura a tensão concedida com os múltiplos pontos de vista, a direção de Coimbra é bem evidente em como lidar com os fatos e ditar a forma como cada um observa a ação ao seu desfavor: analise, por exemplo, o close de Coimbra nos seios e na bunda da personagem de Leal, como se já houvesse um julgamento prévio do delegado, quando ela entra na sala de interrogatório. Igualmente, avalie a forma com que o cineasta conduz friamente o interrogatório com um uso intenso de plano/contraplano durante toda a cena. Ou como o delegado não é visto quando estamos assistindo ao depoimento da professora, já que estamos todos a julgando por ter deixado isso acontecer. Sem deixar de sublinhar os enquadramentos de perfil relacionando o pai como a vítima, colocando-o num mesmo quadro que o investigador – ambos trabalhando juntos. O seu perfeccionismo também é notável nos detalhes mais simples: um policial observando a situação do inquérito ao fundo, o cotidiano na delegacia ou constantes enquadramentos atrás de cortinas, símbolos e vidros denotando algo a espreita dos personagens. (Aliás, neste caso específico, abre-se um parêntese para destacar as batidas aterrorizantes surgidas numa das sequências mais assustadoras do filme: o monstro que "nasce" em Bernardo.)

Como se não fosse o bastante, Coimbra é eficiente em distribuir significados pontualmente em sua narrativa: note o plano que aponta o quarto dos pais e da filha, um ao lado do outro, com o sexo num local e a garota esquecida no outro cômodo; o segundo em que Bernardo passa a ser interrogado, com um súbito plano/contraplano competente; uma placa de alerta na primeira vez que Bernardo vai conversar com Rosa; a protagonista molhando os pés numa procissão, como se lavasse a alma; um cálice de velas separando filha e avós (?) num espelho, o reflexo do lar; a magnífica sequência do gira-gira, que aponta exatamente o triângulo amoroso: com as duas andando em círculos até uma delas situar a melhora no relacionamento, o brinquedo parar, e retornar quando a outra decide retomar o círculo vicioso; e, por fim, o uso de um artefato tão íntimo como um brinco para definir a mudança de Rosa na narrativa. (E, aqui, cabe outro parêntese para falar sobre isso. Neste caso, observe quando a personagem surge pela primeira vez em cena: ela usa um único brinco, no lado esquerdo - um objeto que se torna frequente em seu figurino, mas que sai de cena em dois momentos específicos: no primeiro, quando visita a esposa de Bernardo, ela utiliza o brinco na lado direito, numa mudança súbita de clima; no segundo, os brincos são de argola, como se destacasse o andar em círculos da personagem. Para chegarmos ao instante em que ela não usa absolutamente nada - quando ela perde o que considerava mais precioso.) 

O peso dramático desses momentos, aliás, ganham muito com as atuações de Leandra Leal e Milhem Cortaz. Se ele compõe um homem que aos poucos vai escancarando sua natureza violenta, machista e instável, destacando-se, além disso, na preocupação com as reações de Rosa, pois tem conhecimento de sua culpa; Leal é brilhantemente dúbia na narrativa: ao passo que ela aparenta uma fragilidade comovente em alguns momentos, noutros a naturalidade com que reprime uma agressividade verbal é fantástica. E basta notar como ela age ao falar para Bernardo que comprou uma arma, completamente diferente de suas cenas como vítima, incluindo a soberba sequência em que apanha do personagem.  

Brincando com as possibilidades dos diferentes pontos de vista, como denuncia o pai confundindo o presente que a filha havia ganhado há alguns meses, Fernando Coimbra estrutura sua narrativa orientando-se pela natureza policial que ela possui. Com isto, conduzindo o público a pergunta mais pertinente de toda a história: a metáfora do título. Quem é o lobo atrás da porta? Mas, diferente da garotinha da fábula, aqui, a origem do animal não é tão fácil de ser desvendada.

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