Nymphomaniac, Dinamarca/Alemanha/França/Bélgica/Inglaterra, 2013. Direção: Lars Von Trier. Roteiro: Lars Von Trier. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Christian Slater, Connie Nielsen, Uma Thurman. Duração: 122 min.
De certa forma, é estarrecedor acompanhar os primeiros segundos da nova obra do dinamarquês Lars Von Trier, pois apenas há o silêncio e a escuridão. Como se não houvesse mais nada. Uma extensão do vazio final de Melancolia, seu último longa-metragem. Novamente, o estado de espírito da protagonista nos imerge para a narrativa. O barulho da chuva, as gotas da água que caem, as passagens por detalhes do concreto, as extensões do beco em que vemos Joe pela primeira vez – nada é gratuito. Muito menos o corte abrupto da ausência de som para um heavy-metal. Ali, naquele local, está alguém que vive uma vida à flor da pele, radical, mas que está ferida. E não apenas fisicamente. A música nos tira do estado catatônico. Nos traz para a realidade. O beco, igualmente, é distante de nossa vista, como se fosse importante que ele estivesse longe de nosso dia a dia. Uma prisão para quem o ocupa.
É desta maneira que Von Trier já nos fisga desde seu primeiro take. Sua personagem afirma que a dor é possível, mas não importa. A história, sim. E é para ela que damos nossa atenção quando Joe (Charlotte Gainsbourg) invade a vida de Seligman (Stellan Skarsgärd) e narra a sua vida sexual.
É a forma como a personagem enxerga o contexto a sua volta que nos importa e não o que a cerca. Assim, o lugar em que ela segue Seligman nos remete a um ambiente religioso, como se fosse um confessionário – e, aliás, basta notar a própria divergência dos dois em relação as suas posições para analisar essa diferença: o analista e o "doente" ou o padre e o fiel.
Ao mesmo tempo, diferente de Melancolia, a visão social pretensiosa não é aderida pelo diretor, e sim o ponto de vista pessoal. Portanto, se antes não encontrávamos solidez o suficiente para afirmações como: "a terra é má"; neste caso, Joe dizer que é um péssimo ser humano não é algo deslocado, pois, afinal, é a visão dela sobre si mesma: "Não são todas as crianças, era só eu!".
Do mesmo modo, Von Trier não se limita ao expor a sexualidade infantil, o que pode gerar algum debate: desde brincadeiras na água até o uso de uma corda entre as pernas. Por outro lado, a metáfora, um de seus maiores artifícios como realizador, acaba sendo explicativa demais e não nos dá oportunidade para pensarmos por nós mesmos.
O sentido bíblico do pescador, por exemplo, é logo abafado para uma série de paralelos e contrapontos cômicos que não funcionam como deveriam. Além disso, como algo inacabado, algumas sequências denotam excesso – como aquela em que um homem abandona a família para ficar com Joe e sua esposa passa a constrangê-los ou o melodramático capítulo em que Joe reencontra seu pai. Aliás, o dinamarquês insiste em destacar a falta de sentimento de sua protagonista, algo que se torna cansativo e desnecessário.
Entretanto, o cineasta caminha por uma estrutura cômoda para ele e isso é bem claro durante o percurso: a sutileza com que o desabrochar da natureza, as árvores, o sopro do vento, os barulhos, as sensações e a forma como Joe fala de seu pai sugerem um incesto é perfeita; a câmera se afastando dos dois para demonstrar o exato instante em que Seligman passou a julgá-la também aponta o seu talento; a lâmpada em cima de Joe denunciando uma espécie de aura sendo investigada, idem; ou como a falta de envelhecimento do pai e a decadência da mãe em um ambiente preto e branco, que surge pertinente, revelam a interferência das lembranças. "O amor distorce!".
Como se não fosse o bastante, a sexualidade masculina também encontra sua avaliação. A insegurança e a ingenuidade que nos cerca quando o prazer é proporcionado a outro – algo que num contexto social não conseguimos autoexperimentar – é o mais completo exemplo.
Para Von Trier, o sexo é exato. Não humano. Existe a matemática por trás do prazer, como uma sequência de sexo e números nos indica. Assim sendo, não é difícil perceber a liberdade que a ausência do pai – o que mais a aproximou do conceito de amor – trará em sua vida: múltiplas oportunidades futuras.
* Originalmente publicada no site do Diário Catarinense.
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