29 de janeiro de 2013

Lincoln

Idem, EUA, 2012. Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Tony Kushner, baseado no livro de Doris Kearns Goodwin. Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, John Hawkes, Jackie Earle Haley, Bruce McGill, Tim Blake Nelson, Jared Harris, Lee Pace, Peter McRobbie, Gulliver McGrath, Gloria Reuben, David Costabile. Duração: 150 min.

Sou um dos principais defensores de Cavalo de Guerra. Acredito que a visão infantil de Spielberg para a guerra é explorada de forma competente e adequada, além de nos oferecer cenas magníficas neste ponto de vista – onde podemos destacar a corrida de Joey na terra de ninguém ou o período em que a paz reina por alguns minutos porque dois lados divergentes acabam buscando o mesmo ideal: salvar alguém. Todavia, é com extremo pesar que vi o diretor ambicionando o mesmo caráter ingênuo e utópico de Cavalo de Guerra, que nunca, repito, nunca se encaixaria na história de um homem que teve que se render a uma rede de troca de favores para chegar ao fim da escravidão.

Escrito por Tony Kushner (do excepcional Munique), que se sai muitíssimo bem na adaptação do livro de Doris Kearns por transmitir de forma legível leis e pensamentos jurídicos da época, a história gira em torno do 16º Presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln. Em meio a uma época sangrenta sob a guerra da recessão, no meio de uma nação dividida, o presidente busca unir o país, terminar a guerra e abolir a escravidão de uma só vez – com sua 13ª Emenda. Porém, acaba enfrentando suas limitações como chefe de Estado e precisa vencer na votação de um congresso que não está completamente a seu favor.

Sofrendo gravemente de problemas de ritmo, apresentando muitas sequências de forma muito rápida (a batalha inicial, por exemplo, serve apenas para demonstrar um clima sujo em que pessoas estão pisoteando outras), Spielberg tenta a todo o segundo mostrar como o período em que estamos inseridos é algo cruel e desumano. Dentro dessa proposta, ele cria enquadramentos como aquele em que vemos o choro de Elizabeth Keckley, após ser chamada de anormal no congresso americano ou nas vaias histéricas quando apenas são citadas as emancipações racial e feminina. Além disso, contando com uma trilha infantil de John Williams, que se limita a pontuar os instantes emocionais e os “engraçadinhos” sempre de forma excessiva, o filme ainda muda drasticamente de ritmo em momentos pesados. Neste caso, observe como a tensa votação é trocada por uma correria deslocada até o presidente ou quando um sujeito tenta atirar em alguém recolhendo os papéis no chão ou na criança com o uniforme.

Spielberg, além disso, faz-nos esquecer de por que o chamávamos de gênio nas ocasiões em que decide apenas fazer um trabalho burocrático: tanto nos planos centrais que vão nos aproximando dos personagens enquanto discursam quanto nos cortes durantes as conversas. Do mesmo modo, o estima por enquadramentos de perfil só não é maior que Lincoln andando por corredores, sem querer dizer absolutamente nada. Para não falar nas aparições súbitas e deselegantes de personagens tão importantes (aqui vale ressaltar a primeira vez em que Jones é mostrado ou até mesmo a cena inicial com Lincoln). Em contrapartida, Spielberg consegue ser elegante na maneira como expõe a troca de favores, como se fosse algo natural, rotineira – visualize isso no primeiro acordo que é indicado no longa-metragem (“Diga que é uma necessidade militar”). Ou quando exibe Lincoln lendo para seu filho na hora em que a votação acontece – como se ensinasse uma nova geração a ser mais crítica e madura. Da mesma forma, conta com um filme esteticamente impecável, seja na direção de arte, onde vemos o clima desorganizado da Casa Branca, sem a formalidade presidencial atual (manuscritos, documentos e mesas desarrumadas em reuniões, muitos na sala que falam juntos); seja na fotografia de Janusz Kaminski, que mantém um contraste cinzento, quase sem vida, evidenciando a era de preconceitos e de espaços precários.

E se Spielberg ainda tenta mistificar a figura de Lincoln com seus enquadramentos, só não consegue por uma atuação impressionante de Daniel Day-Lewis. Passando em sua curvatura um aspecto quase frágil, mantendo uma voz cansada, arrastada, proferida quase em sussurros, o ator é impecável na construção das particularidades de seu personagem e em soar bastante humano em determinadas ocasiões. Observe, por exemplo, como o seu olhar (sempre tímido e cabisbaixo) parece buscar uma aprovação para suas histórias e ideais ou na maneira como sustenta suas mãos entrelaçadas – quase como um sinal de apoio ao próximo. Quando se sente ansioso, por outro lado, Day-Lewis procura apontar para mãos mais inquietas e nervosas, quase numa espécie de tique. Além do mais, analise a raiva contida do personagem quando ouve o chamarem de ditador.

Mesmo prejudicado pelo roteiro, Gordon-Levitt também consegue transmitir sua busca para fugir do estigma de filho do presidente. É tocante, aliás, a cena em que se reencontra com o pai: seu olhar surpreso e triste quando Lincoln apenas aperta sua mão e pede para ele se retirar da sala. Tommy Lee Jones, ainda, torna-se bastante feliz na composição de seu Thaddeus Stevens. Transmitindo seus valores inquestionáveis, mesmo que, mais uma vez, o roteiro não permita tanto, o ator parece confortável em como assume o papel de uma pessoa de temperamento forte, mas que se ajusta a um belíssimo autocontrole em um ponto chave da trama, que só é prejudicado por um diálogo expositivo em seguida.

Entretanto, Sally Field parece estar disposta a ganhar de qualquer maneira o seu terceiro Oscar – mesmo que para isso soe dramaticamente patética. Assim, a atriz treme e faz cara de choro a cada aparição (“Ele está aqui, está aqui”), não aprofundando em nada sua Mary Todd e, pior, soando deselegante e grosseira na maioria de suas cenas (“Você nunca será amado como ele. O que isso lhe faz sentir?”).

Não tendo coragem nem de mostrar o destino final de Lincoln, mostrando que sua audácia se perdeu há muito tempo, Spielberg mexe com temas “delicados” de um jeito acriançado e inoportuno. E o que poderia render um filme que escancarasse discriminações, mostrasse a nossa sociedade opressora que é, além de terminar com uma desilusão devastadora, acaba sendo vítima de um diretor que cada vez mais perde a ousadia e genialidade que já foram utilizadas para descrevê-lo.
                              

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