Meu avô era alcoólatra. Perdeu tudo na vida. Família, dinheiro, negócio e amor. Apenas um de seus três filhos ainda o visitava e sempre vi uma sombra de felicidade quando o via comigo – por estar perto de um de seus netos. Eu o amava profundamente. Aliás, penso que era um dos familiares a quem eu mais era devoto. Apesar de também não o visitar com a frequência que deveria, porque achava doloroso algumas de suas condições, estava sempre com ele em meu coração. Ele morreu no ano passado. Reviu a única mulher que amou durante toda a sua vida – minha avó, claro – somente quando estava definhando por cirrose em uma cama de hospital. Costumo pensar que, agarrado a mão de minha avó, ele pensou no dia em que ela o abandonou, dando-lhe uma escolha: a bebida ou ela. Na ocasião, meu avô preferiu a bebida. A única que ficou com ele até o fim, mas que prejudicou toda a sua existência.
Lembrei-me disso, com lágrimas que saíam de meu corpo como se precisassem dar um último adeus, numa cena da nova obra-prima de Paul Thomas Anderson: O Mestre. Uma cena que marcava a dor de uma pessoa sem rumo, afogada pela bebida, relembrando o passado tão cruel, na frente de alguém que deu o braço para ela se levantar. “Aqui é um lugar em que as lembranças não estão convidadas”, diz Lancaster Dodd.
Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, a história acompanha o problemático Freddie Quell, que, após a guerra, volta para a casa e acaba conhecendo uma pessoa conhecida por “O Mestre”. Entrando para um tipo de culto chamado de “A Causa”, o jovem começa a rever os conceitos que tem sobre a vida e tenta (re) estabilizar-se na sociedade.
Explorando o lado humano de seus personagens desde o seu primeiro ato (“Sou muitas coisas, mas acima de tudo um homem!”), sem preocupar-se muito em transmitir mais afundo as ideias da seita, Anderson é notável ao estabelecer uma coesão narrativa que resulta em duas cenas curiosíssimas: na primeira, Freddie correndo por um campo sem fim para depois, em cima de uma moto, percorrer os seus sonhos (agora com alguma sustentação); e, na segunda, os cumprimentos de um encantador Dodd são substituídos para um reconhecido Freddie na convenção de Phoenix. Além disso, o diretor trata sempre em focalizar Quell deslocado nos lugares em que segue o mestre – aliás, note o olhar de admiração sempre presente ou como a primeira vez em que vemos um sorriso real do personagem é durante um discurso de Dodd.
Do mesmo modo, observe a imponência do mestre frente ao seu culto: um perfeito exemplo é quando a polícia chega para levá-lo e seus discípulos o cercam como verdadeiros defensores da causa ou até mesmo nas luxuosas poltronas que demonstram sempre o aspecto de rei. Ao mesmo tempo, como se não bastasse, Anderson também é perfeito na abordagem dos dois opostos que são Freddie Quell e Lancaster Dodd. E basta visualizarmos isso: desde o primeiro levando os pertences do segundo, andando sempre atrás (nunca ao lado ou à frente) de Dodd, até a incrível cena em que ambos são mostrados lado a lado nas celas de uma prisão.
Entretanto, os maiores benefícios do filme ficam por conta do domínio de preparação de elenco de Anderson e de seu roteiro. Pois, enquanto somos agraciados com frases tão pertinentes aos momentos vividos, como “Lutamos contra o dia e vencemos”, Phillip Seymour Hoffman e Joaquin Phoenix dominam a tela desde o primeiro minuto de projeção. Criando uma pessoa que transparece bondade, genuinidade e segurança, Hoffman ainda é soberbo ao explorar os conflitos de Dodd com um temperamento explosivo, trazendo ainda mais honestidade ao personagem. Analise, por exemplo, suas reações quando se vê confrontado por seus pensamentos – não importando se é um simples cético ou a mais fiel devota. Além do mais, é tocante a maneira como ele se porta diante de Freddie: o olhar ressentido que dá quando este volta, a sua comoção frente ao passado do amigo e a inclassificável cena do choro contido quando começa a cantar a música que Freddie cantou na primeira conversa dos dois.
E se Hoffman prova mais uma vez que é um dos melhores atores vivos, Joaquin Phoenix não fica atrás. Pelo contrário, com seu Freddie Quell cria uma figura extremamente comovente e palpável. Denotando ares infantis ao personagem, indicando uma voz arrastada, quase receosa com o que irá ser dito e dono de um temperamento difícil, Phoenix passa por uma verdadeira transformação durante a narrativa. Se em um momento parece uma criança apontando para os seios de uma garota como se estivesse brincando, noutro, parece uma das pessoas mais racionais do planeta ao sentir qual o momento certo de seguir em frente. E não apenas a maneira como exibe as sequelas da bebida, mas o seu choro na sequência final ou na cena em que suas têmporas parecem saltar, evidenciam a sua excelência. “É o rapaz mais corajoso que já vi”. Ao passo que Amy Adams é esforçada em passar a grande mulher que é vista como a sombra e confidente de Dodd.
Gostaria de encontrar com o meu avô novamente. Ter uma oportunidade, mesmo que em sonho, como Freddie experimentou. Fazer as perguntas que eu sempre quis fazer e as assisti no interrogatório de Dodd à Freddie – desde já uma das melhores sequências que já vi em um filme. Apagar o passado, convidá-lo a novas lembranças e cantar aquela mesma canção entoada por dois atores, que para sempre estarão em minha memória: “Eu quero lhe levar em um barco lento para a China. Onde estaremos a sós. E onde eu poderei lhe manter em meus braços para sempre”.
Um comentário:
Tenho encontrado tantas interpretações díspares de O Mestre entre as críticas dos amigos, mas a sua é a mais comovente. De longe.
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