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Idem,
Brasil, 2014. Direção: Marco Dutra. Roteiro: Gabriela Amaral Almeida e
Marco Dutra, baseado no livro A Arte de
Produzir Efeito Sem Causa. Elenco: Antônio Fagundes, Marat Descartes, Sandy
Leah, Gilda Nomacce, Helena Albergaria, Kiko Bertholini, Tuna Dwek. Duração:
108 min.
Quando escrevi sobre o excepcional Trabalhar Cansa, em 2011, eu apontei que
o mais impressionante da estrutura narrativa criada por Juliana Rojas e Marco
Dutra era a vantagem de ser um falso drama. Os temores do público eram
provenientes da dose dramática depositada na realidade que a protagonista
vivia. O terror não era definido pelo gênero, mas pelos acontecimentos familiares
no roteiro. No seu primeiro longa-metragem solo, Dutra não rompe essa barreira
entre o sobrenatural e o real, mostrando-nos desde o princípio qual a sua
proposta: o caminho que percorreremos não é seguro ou convencional, mas nem por
isso imprevisível ou inverossímil.
Desta forma, aproveitando-se do argumento ocultista
que tem em mãos, o cineasta já denuncia uma série de reproduções no primeiro
instante que acompanhamos Júnior chegando ao prédio de seu pai, após ter saído
de casa. No enquadramento geral, Dutra nos indica uma cadeia de desenhos
repetitivos que estão emaranhados nos vidros do edifício para, enfim, logo
depois, deixar-nos do lado de fora, mas mais próximos daqueles – compreendendo
que os desenhos que antes pareciam tão sistemáticos, possuem algumas minúsculas
divergências que haviam passado despercebidas. Ao mesmo tempo, o diretor nos
priva de algo mais explicativo sobre a situação, mas insiste em evidenciar o
afastamento entre pai e filho: perceba, assim, o momento que uma divisória no
vidro os separa, com a curvatura de Júnior e sua mala, além do mais, lembrando
bastante as linhas padronizadas na vidraça.
Do mesmo modo, pontuando lentamente sua obra com
algumas dicas e ancorando-se na brilhante montagem de sua contumaz parceira,
Juliana Rojas, Dutra intriga muito mais na sugestão do que realmente na
execução. Neste caso, embora não seja muito orgânica a análise das mudanças no
apartamento abrangidas pelo protagonista ao entrar na sala, a primeira
indagação de Júnior ser referente às grades que eram acrescentadas nas janelas
é assustadora. Igualmente, o diretor volta a explorar os sons quase que exageradamente:
logo, o grito de um louco usado no decorrer do filme só não se mostra um
artifício tolo, porque a natureza dele se revela um pouco mais ambiciosa.
(Abrindo um parêntese para o caso citado, é fácil assumir que as “aparições”
dos gritos sejam justamente para recordar o destino do irmão, e não é à toa que
as mesmas vozes são ouvidas novamente no local em que se reencontram.) Ainda,
o design de som é perfeito em
conferir o tom requerido, de tal modo: os sons simples de uma colher, um choro,
o som do estofamento acabam denotando os ares ensurdecedores inerentes à personalidade
do próprio Júnior – e meu favorito, talvez, seja o som de uma cadeira remetendo
a uma lâmina.
Desconstruindo o passado e o presente
simultaneamente, ainda por cima, o diretor passa a administrar a intensidade e
a estranheza daquele apartamento com exatidão, impondo uma mudança gradual à
narrativa e ao protagonista: avalie, consequentemente, como se sucede a atração
de Júnior por Bruna (algo que culmina numa cruza interessante de Enquanto você
dorme com Psicose). A montagem de Rojas, sob esta ótica, é excelente em lidar
com o passado inserido no presente dos personagens: veja como logo depois da
emblemática cena do personagem de Descartes analisando Bruna no banho, só aí
que assistimos a real relação da mãe com seus filhos. Aliás, é justamente a
partir dali que decorre a mudança feita nos aposentos por Júnior. É
interessante perceber a configuração da perda de lucidez do protagonista, neste
ponto, pois no primeiro ato é quase insistente o modo com que Dutra aponta a
sua tentativa em soar natural naquele ambiente, mantendo uma postura
concentrada – novamente, as paredes da sala que o separam do pai e o seu
isolamento apenas são ofuscados pelas linhas da parede. A seguir, é clara a
primeira vez que compreendemos o indício de loucura: a maneira com que ele mexe
a cabeça ouvindo uma música infantil.
E obviamente isso não seria possível sem a atuação
fantástica de Marat Descartes, que envolve com precisão o jeito de Júnior em
sustentar o seu combate moral vivido intensamente dentro de si: a maneira com
que se infantiliza, voltando a falar com seu pai sobre a “mamãe”, o domínio que
a simples figura dela reflete sobre ele, a fragilidade rebelde que destaca em
determinadas cenas – ele mostrando a língua para a namorada de seu pai. Sem
deixar de citar dois momentos marcantes: o primeiro, quando analisa
nervosamente a recepção de Bruna quanto a um presente dado por ele; noutro, a
expulsão de Lurdinha da casa da mãe, (E aqui vale outro parêntese, já que a
frase dita por Miranda no tratamento espiritual – “Você não vai entrar aqui!” –
se revela um aviso para a mente debilitada de Júnior: afinal, a pose dela
lembra muito a de Olga.) Já Fagundes, por sua vez, mostra-se nervoso desde a
chegada do filho em sua casa, temendo que ele tenha o mesmo destino do irmão.
Assim, o seu personagem, mesmo que tente tratar o filho com singeleza,
manifesta-se num misto de irritação, preocupação, nostalgia e assombro durante
todo o percurso – e a perspectiva da respiração profunda de Sênio é inquietante
na cena que os irmãos se reencontram.
Como se não fosse o bastante, o cineasta também
expõe, nas cores marginalizadas, a insanidade à margem do relacionamento daquela
família: e mesmo que Sandy não seja uma boa escolha para salientar a mudança na
sua personagem, note como ela acorda oposta ao Júnior no segundo ato, mas
tapada com a mesma manta que era usada por ele quando a influência ocultista o
havia reprimido. Além disso, as cenas em que os dois cantam a melodia composta
pela mãe são os momentos mais intimidantes do longa, principalmente quando
Dutra enquadra a foto da mãe no meio dos personagens. E se a sessão espiritual
de Miranda banaliza um pouco a obra, oferecendo uma abordagem brega que não faz
jus ao filme, ainda que possa ter sido a intenção, o mesmo não se pode dizer do
ritual com as cabeças de gelo – sempre perturbadores, sobretudo na ótima
sequência final (“Levo a cabeça comigo!”).
Um ritual que serve para balançar ainda mais a
relação entre pai e filho, que, agora, finalmente atingiu o que ambos esperavam
– ainda que em expectativas diferentes. E é necessário, nesta linha de
raciocínio, retornar a uma afirmação curiosa de Júnior para Bruna no segundo
ato: “Quando eu era vivo, eu era mais quente!”. Na história de Dutra, a
declaração, como esperado e entendido, não tem a ver com fantasmas, mas com a
nossa própria essência. Porque Júnior não estava mais ali, naquele momento.
Estava morto. Ao menos, metaforicamente.
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