17 de julho de 2014

Quando Eu Era Vivo

Idem, Brasil, 2014. Direção: Marco Dutra. Roteiro: Gabriela Amaral Almeida e Marco Dutra, baseado no livro A Arte de Produzir Efeito Sem Causa. Elenco: Antônio Fagundes, Marat Descartes, Sandy Leah, Gilda Nomacce, Helena Albergaria, Kiko Bertholini, Tuna Dwek. Duração: 108 min.

Quando escrevi sobre o excepcional Trabalhar Cansa, em 2011, eu apontei que o mais impressionante da estrutura narrativa criada por Juliana Rojas e Marco Dutra era a vantagem de ser um falso drama. Os temores do público eram provenientes da dose dramática depositada na realidade que a protagonista vivia. O terror não era definido pelo gênero, mas pelos acontecimentos familiares no roteiro. No seu primeiro longa-metragem solo, Dutra não rompe essa barreira entre o sobrenatural e o real, mostrando-nos desde o princípio qual a sua proposta: o caminho que percorreremos não é seguro ou convencional, mas nem por isso imprevisível ou inverossímil.

Desta forma, aproveitando-se do argumento ocultista que tem em mãos, o cineasta já denuncia uma série de reproduções no primeiro instante que acompanhamos Júnior chegando ao prédio de seu pai, após ter saído de casa. No enquadramento geral, Dutra nos indica uma cadeia de desenhos repetitivos que estão emaranhados nos vidros do edifício para, enfim, logo depois, deixar-nos do lado de fora, mas mais próximos daqueles – compreendendo que os desenhos que antes pareciam tão sistemáticos, possuem algumas minúsculas divergências que haviam passado despercebidas. Ao mesmo tempo, o diretor nos priva de algo mais explicativo sobre a situação, mas insiste em evidenciar o afastamento entre pai e filho: perceba, assim, o momento que uma divisória no vidro os separa, com a curvatura de Júnior e sua mala, além do mais, lembrando bastante as linhas padronizadas na vidraça.

Do mesmo modo, pontuando lentamente sua obra com algumas dicas e ancorando-se na brilhante montagem de sua contumaz parceira, Juliana Rojas, Dutra intriga muito mais na sugestão do que realmente na execução. Neste caso, embora não seja muito orgânica a análise das mudanças no apartamento abrangidas pelo protagonista ao entrar na sala, a primeira indagação de Júnior ser referente às grades que eram acrescentadas nas janelas é assustadora. Igualmente, o diretor volta a explorar os sons quase que exageradamente: logo, o grito de um louco usado no decorrer do filme só não se mostra um artifício tolo, porque a natureza dele se revela um pouco mais ambiciosa. (Abrindo um parêntese para o caso citado, é fácil assumir que as “aparições” dos gritos sejam justamente para recordar o destino do irmão, e não é à toa que as mesmas vozes são ouvidas novamente no local em que se reencontram.) Ainda, o design de som é perfeito em conferir o tom requerido, de tal modo: os sons simples de uma colher, um choro, o som do estofamento acabam denotando os ares ensurdecedores inerentes à personalidade do próprio Júnior – e meu favorito, talvez, seja o som de uma cadeira remetendo a uma lâmina.

Desconstruindo o passado e o presente simultaneamente, ainda por cima, o diretor passa a administrar a intensidade e a estranheza daquele apartamento com exatidão, impondo uma mudança gradual à narrativa e ao protagonista: avalie, consequentemente, como se sucede a atração de Júnior por Bruna (algo que culmina numa cruza interessante de Enquanto você dorme com Psicose). A montagem de Rojas, sob esta ótica, é excelente em lidar com o passado inserido no presente dos personagens: veja como logo depois da emblemática cena do personagem de Descartes analisando Bruna no banho, só aí que assistimos a real relação da mãe com seus filhos. Aliás, é justamente a partir dali que decorre a mudança feita nos aposentos por Júnior. É interessante perceber a configuração da perda de lucidez do protagonista, neste ponto, pois no primeiro ato é quase insistente o modo com que Dutra aponta a sua tentativa em soar natural naquele ambiente, mantendo uma postura concentrada – novamente, as paredes da sala que o separam do pai e o seu isolamento apenas são ofuscados pelas linhas da parede. A seguir, é clara a primeira vez que compreendemos o indício de loucura: a maneira com que ele mexe a cabeça ouvindo uma música infantil.

E obviamente isso não seria possível sem a atuação fantástica de Marat Descartes, que envolve com precisão o jeito de Júnior em sustentar o seu combate moral vivido intensamente dentro de si: a maneira com que se infantiliza, voltando a falar com seu pai sobre a “mamãe”, o domínio que a simples figura dela reflete sobre ele, a fragilidade rebelde que destaca em determinadas cenas – ele mostrando a língua para a namorada de seu pai. Sem deixar de citar dois momentos marcantes: o primeiro, quando analisa nervosamente a recepção de Bruna quanto a um presente dado por ele; noutro, a expulsão de Lurdinha da casa da mãe, (E aqui vale outro parêntese, já que a frase dita por Miranda no tratamento espiritual – “Você não vai entrar aqui!” – se revela um aviso para a mente debilitada de Júnior: afinal, a pose dela lembra muito a de Olga.) Já Fagundes, por sua vez, mostra-se nervoso desde a chegada do filho em sua casa, temendo que ele tenha o mesmo destino do irmão. Assim, o seu personagem, mesmo que tente tratar o filho com singeleza, manifesta-se num misto de irritação, preocupação, nostalgia e assombro durante todo o percurso – e a perspectiva da respiração profunda de Sênio é inquietante na cena que os irmãos se reencontram. 

Como se não fosse o bastante, o cineasta também expõe, nas cores marginalizadas, a insanidade à margem do relacionamento daquela família: e mesmo que Sandy não seja uma boa escolha para salientar a mudança na sua personagem, note como ela acorda oposta ao Júnior no segundo ato, mas tapada com a mesma manta que era usada por ele quando a influência ocultista o havia reprimido. Além disso, as cenas em que os dois cantam a melodia composta pela mãe são os momentos mais intimidantes do longa, principalmente quando Dutra enquadra a foto da mãe no meio dos personagens. E se a sessão espiritual de Miranda banaliza um pouco a obra, oferecendo uma abordagem brega que não faz jus ao filme, ainda que possa ter sido a intenção, o mesmo não se pode dizer do ritual com as cabeças de gelo – sempre perturbadores, sobretudo na ótima sequência final (“Levo a cabeça comigo!”).

Um ritual que serve para balançar ainda mais a relação entre pai e filho, que, agora, finalmente atingiu o que ambos esperavam – ainda que em expectativas diferentes. E é necessário, nesta linha de raciocínio, retornar a uma afirmação curiosa de Júnior para Bruna no segundo ato: “Quando eu era vivo, eu era mais quente!”. Na história de Dutra, a declaração, como esperado e entendido, não tem a ver com fantasmas, mas com a nossa própria essência. Porque Júnior não estava mais ali, naquele momento. Estava morto. Ao menos, metaforicamente.

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