30 de novembro de 2016

Demônio de Neon

The Neon Demon. França/Dinamarca/EUA, 2016. Direção: Nicolas Winding Refn. Roteiro: Nicolas Winding Refn, Mary Laws e Polly Stenham. Elenco: Elle Fanning, Jena Malone, Bella Heathcote, Abbey Lee, Karl Glusman, Desmond Harrington, Charles Baker, Christina Hendricks e Keanu Reeves. Duração: 1h58min.

É nesse mundo que vivemos. As condições mudam, e nós nos transformamos. [Monstros Invisíveis, Chuck Palahniuk].

Ao tratar o vício estético como uma devassidão sintomática que se alastra pela nossa mente em ondas cerebrais que teriam a missão de proteger nosso autocontrole, no livro Monstros Invisíveis, Chuck Palahniuk brinca com a desfiguração, considerando-a uma epítome do espetáculo: quanto vocês pagariam para ver isso? Se para outro autor americano celebrado, David Foster Wallace, as cicatrizes representavam a crueza do pensamento humano individual, para Palahniuk, elas expõem nossos ecos sociais. É a principal intenção de Nicolas Winding Refn se aventurar por essa natureza: o consumo levado à última potência. Demônio de Neon não se restringe ao passeio pela estética; ele tenta racionalizá-la, na única forma que poderia: por meio da imagem.

Julgando a juventude de Jesse como uma interferência àquele mundo e àquelas pessoas, Refn representa brilhantemente seu ensaio indigesto com  a chegada da protagonista na agência dirigida pela personagem de Christina Hendricks. Observe, por exemplo, como o formato dos símbolos nas paredes ressaltam uma comparação com genitálias femininas, como se todo aquele território fosse construído em razão da quantidade de vaginas que solidificou esse império. Essa espetacularização tomando o corpo feminino como base também é evidenciada quando modelos se enfileiram tal qual manequins, produtos designados para entretenimento, antes de entrar na passarela.

Elle Fanning, na melhor atuação de sua carreira, é a vantagem de Refn. Sua pele branca e seus figurinos, os quais acentuam a pureza da personagem em roupas mais claras, contrastam com os costumes estéticos de pessoas já sugadas por aquele mundo. A indicação mais clara que Refn produz é quando Jesse entra no clube que Ruby a leva pela primeira vez e todos ao seu redor estão sem cor, sem vida, apenas repetindo movimentos pré-estabelecidos. É a protagonista que ainda brilha naturalmente no salão. Igualmente, na sua primeira experiência profissional, o diretor ressalta aos poucos essa perda de ingenuidade por parte da personagem de Fanning – não deixe de perceber o figurino, novamente, que destaca a roupa preta do fotógrafo com a roupa clara de Jesse, além de notar o quanto a imagem produz a sensação de corrompimento.

A sedução é o meio, não o clímax, evidencia Refn. No ensaio, Jesse e o fotógrafo estão quase numa tela branca, que ainda não foi preenchida, com infinitas possibilidades. Enquanto ele vai pedindo para ela tirar sua roupa e abdicar de sua doçura, a câmera de Refn a acompanha, achatando mais e mais a imagem até quase comprimi-la por completo. Ela finalmente se transforma.


– Pássaros.

Eu escrevo:

pássaros.

pássaros comeram meu rosto.

E começo a rir.

Brandy não ri e pergunta:

- O que significa isso?

Eu continuo rindo e escrevo:

eu estava dirigindo na via expressa.

E continuo rindo.

alguém disparou um tiro de fuzil calibre trinta.

a bala arrancou toda a mandíbula do meu rosto.

Ainda rindo.

vim para o hospital, eu escrevo.

não morri.

Rindo.

eles não conseguiram colocar meu queixo de volta, porque as gaivotas comeram tudo.

Então paro de rir. [Chuck Palahniuk, Monstros Invisíveis]

Esse domínio de Refn sobre sua imagem não faz com que diálogos expositivos sejam necessários para complementar a trama. Assim, se a entrega absoluta pela arte, por parte de Jesse, é visualizada em seu primeiro instante atrás da lente, na visão de seu namorado, quando ela é fotografada morta, o oferecimento do seu corpo é levado ao extremo quando o diretor insinua outras modelos a cercando, como abutres, esperando para fazer sua refeição. Ao contrário de Kay, que perde sua mandíbula, seu perfil, sua presença, em Monstros Invisíveis, aqui, em Demônio de Neon, Jesse perde seu corpo, ao ser acuada. Ruby, Gigi e Sarah são as caçadoras estimuladas pela promessa do retorno aos velhos tempos. Elas querem roubar exatamente a única coisa que desapareceu delas: a juventude. De diferentes formas. Ruby quer o corpo de Jesse, Sarah quer seu sangue, Gigi quer sua pele.


Ao contrário de Starry Eyes, onde os flashes da fama eram as principais insanidades da indústria, é quem divide a fama ou quem está à procura dela, em Demônio de Neon, que se esgueira para avaliar a carne fresca. Assim, quando Jesse está sentada no capô do carro, acompanhada de seu namorado, e ela discorre sobre a lua, algumas coisas sublinham o talento de Refn como diretor: a principal delas, o pensamento narrativo. Ali, o cineasta passeia pela base psicológica do seu filme. Jesse afirma que na infância sempre pensou no satélite como um grande olho, sempre a observando. Quando ambos falam sobre se Jesse deve ou não mentir, lá está a lua, "analisando-a" no canto da imagem. Quando ela está íntima de seu namorado e ele tenta a proteger, só há os dois em cena. O grande olho não está lá. A última vez que esse olho é visto? Bem, talvez a metáfora seja ainda mais incrível, quando é exatamente um olho que sai da boca de Sarah na cena final. A diferença é que o observador agora é outro.    

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