Hugo, EUA, 2011. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: John Logan, baseado no livro de Brian Selznick. Elenco: Ben Kingsley, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, Sacha Baron Cohen, Christopher Lee e Jude Law. Duração: 126 minutos.
Desde os primeiros debates sobre a teoria cinematográfica, muito se foi discutido sobre realidade vs. ficção, cinema-verdade vs. cinema-mentira e Lumiére vs. Méliès. Em Hugo, Scorsese não tem intuito de discutir quem foi o mais importante para o cinema, apesar de estar nas entrelinhas, aqui, a pretensão do diretor é se aventurar nos primórdios da história do cinema – assim, fazendo sua carta de amor para a arte que tanto ama e proporcionando uma experiência cinematográfica como poucas.
Escrito pelo eficiente John Logan (que já havia trabalhado com Scorsese em O Aviador ), a história giro em torno de Hugo Cabret, órfão que vive escondido numa estação de trem e guarda um autômato quebrado que foi a última lembrança deixada por seu pai, antes de morrer. Depois de perder um caderno que utilizava para consertar o robô, ele conhece Isabelle, uma jovem com quem faz amizade. Logo, Hugo descobre que ela tem uma chave com o tamanho exato da fechadura existente no robô e que falta para fazê-lo dar corda. É quando o robô volta a funcionar e leva os dois a resolver um antigo mistério sobre o avô de Isabelle, Papa Georges.
Mostrando sua adaptação com a tecnologia que aborda, Scorsese é certeiro ao criar grandes planos-seqüências em perseguições ou ambientações e utilizar grande profundidade de campo para nos introduzir em toda a extensão daqueles lugares – observe, por exemplo, como a estação parece gigantesca e como a casa de Méliès, principalmente a entrada, parece pequena (quase como se Hugo não fosse bem vindo naquele lugar). Da mesma forma, Scorsese é admirável tanto em dar o dinamismo às fugas e perseguições à Hugo (os cinco primeiros minutos devem ser meus preferidos), inclusive, brincando em utilizar o cachorro para vermos a ação em primeira pessoa, quanto nos planos plongée recorrentes na obra.
Igualmente curioso é assistir a Scorsese em uma trama infantil. Deste modo, mesmo com uma história que nem de longe lembre cenários perigosos e caóticos como a Nova York de Taxi Driver ou a Boston de Os Infiltrados, a Paris de Scorsese também ganha ares quase soturnos na primeira saída de Hugo da estação para seguir Papa Georges e tentar recuperar seu livro – auxiliado pela ótima fotografia de Robert Richardson que confere tons azuis sombrios ao abordar o caminho percorrido por Hugo na cena. Assim como, a (fantástica) direção de arte também confere o tom certeiro na cena que Hugo e Isabelle caminham por ruas escuras e sujas de Paris – com os prédios em seu redor quase desmoronando, num aspecto miserável, e um clima recorrente de perigo.
Também é interessante observar como o diretor trata a trama envolvendo os órfãos e o caminho para os orfanatos. Mantendo sempre o clima de agonia para quem é capturado e levado até o escritório do Inspetor da estação, que não apenas trata os órfãos como se fossem culpados por sua situação, como também os mantém enjaulados – como se fossem perigosos para a sociedade. Além disso, Scorsese também é competente ao retratar, mesmo que não de forma profunda, a necessidade daquelas crianças (podemos notar que geralmente são pegas por comida); e a cena do olhar de Hugo fitando os croissants é peculiar, justamente, por oferecer essa visão.
Como se não fosse o bastante, também estabelece com solidez suas subtramas, fazendo com que o filme consiga ganhar uma força poderosa a partir do segundo ato e da primeira ida a um cinema de esquina em um festival de cinema mudo – e, note como o diretor traz sensibilidade tanto nas reações da platéia nos cinemas (algo não só feito na sessão de Isabelle e Hugo, como também na do trem da estação de Lumière), quanto num desenho que mostra o primeiro grande filme do cinema, A Viagem à Lua.
E mesmo que o diretor nunca esqueça suas raízes (como a cena em que mostra a morte do pai de Hugo), Scorsese também é eficiente em sua trama infantil, com personagens igualmente juvenis – como Hugo, ao ser confrontado porque quer fazer funcionar o autômato, diz: “Acho que terá uma mensagem do meu pai”, ou, em declarações, como: “Não é hora de entender tanta tristeza”. Em contrapartida, há também um clima angustiante digno, como na cena em que o Inspetor da estação vai sendo aproximado aos poucos e com desconfiança vai ficando mais imponente na frente de Hugo e Isabelle ao pronunciar pausadamente: “Por que meu cão não vai com sua cara?”.
E é compondo seu personagem-título com uma curiosidade aguçada para o mistério e sempre com um olhar sensível e emocional que Scorsese encontra seu tom – o mesmo que Spielberg buscou em Cavalo de guerra, mas parou na falta de talento de Irvine –, Asa Butterfield se sai admiravelmente bem ao criar Hugo com a perspicácia e sensibilidade necessária para que o espectador acredite no personagem e em sua busca. Sempre deixando suas emoções à flor da pele, é eficientemente focalizado em seu olhar choroso e exibe a ingenuidade indispensável para seu personagem, administrando uma ótima química com Moretz; e ainda que falhe em demonstrar emoção na cena em que não consegue fazer o autômato funcionar, o jovem é notável ao conferir a solidão do personagem.
Já Sacha Baron Cohen é natural no que sabe fazer de melhor: a comédia. Surgindo quase como um Inspetor Jacques Clouseau, o ator consegue ser desajeitado sem soar apenas como tolo e Cohen parece se divertir tanto em momentos “dramáticos” (como quando desconfia que o primo de Isabelle não seja o que diz ser) quanto em frases hilárias: “Não, não estava falando com o senhor” ou “Quer mesmo que sua esposa volte?”. Ao passo que Moretz é só adequada ao auxiliar Hugo a chegar a Papa Georges, sem um maior aprofundamento.
Destacando-se na construção de Méliès como um natural desiludido com a “evolução” do cinema que deixou seus filmes ultrapassados, Kingsley é excelente ao conferir um misto de mágoa e tristeza no olhar sempre que vê Hugo, por lembrar-se do seu passado – note, por exemplo, o olhar do personagem quando entrega para Hugo o caderno destruído (como se os sonhos do jovem estivessem também em cinzas como o dele). Igualmente fascinante é como George passa a mudar nos primeiros dias com Hugo, parecendo reencontrar a vontade que havia perdido. E Scorsese trata de salientar a fraqueza/velhice do personagem não só em cenas que o personagem aparece esgotado ou quando um personagem diz que ele tem que descansar, mas na simples focalização de Scorsese nas rugas de George já no início.
Pontuando a narrativa e a emoção que a envolve desde o começo (na belíssima seqüência inicial), Howard Shore faz, talvez, seu melhor trabalho como compositor ao conferir tons compassivos em seus acordes de The Thief ou na resolução final em Couer Volant. Assim como, a montagem da sempre excelente Thelma Schoonmaker consegue administrar os jumps e manter a narrativa ritmada.
Mas o que realmente torna Hugo um marco é seu ode ao cinema e seus maiores realizadores. Desde os cartazes espelhados de Chaplin no cinema de rua que Hugo e Isabelle verão a primeira sessão da jovem, os desenhos das produções cinematográficas de Méliès que voam para o alto até encontrar sua derradeira queda – um simbolismo lógico para seu personagem –, a seqüência dos filmes aparecendo através das paginas dos livros na Biblioteca da Academia Cinematográfica e a exibição dos Lumière com o trem chegando à estação (aliás, quer analogia mais óbvia que essa do lugar onde é o principal palco do filme?).
Uma coisa é certa, em sua carta de amor ao cinema e a George Méliès, Scorsese fez o que poucos até hoje conseguiram: serem nostálgicos sem cair em armadilhas. Mais do que isso, é a declaração apaixonada de um realizador apaixonado por seu trabalho, portanto, sendo normais declarações que certamente muito refletem nas opiniões do diretor, como quando Hugo pergunta para Isabelle: “Por que me ajuda? Porque nunca estive numa aventura antes. E pode ser uma”, ou, quando Méliès diz: “Se você quer saber de onde os sonhos vêem, dê uma olhada. São aqui que eles são feitos”. E como discordar quando somos hipnotizados por uma produção de Viagem à Lua ou quando vemos a famosa lua de Méliès vir em nossa direção?
Como dito no início, ainda que Scorsese não tenha feito comparações de quem foi o melhor ou o pioneiro entre Méliès e Lumière, a visão do diretor é clara. Tanto nas questões mais comuns (como a primeira conversa entre o ilusionista e um dos irmãos, mostrando suas diferentes visões sobre a arte) até a simples frase de Méliès para Hugo: “Como você, eu adorava consertar coisas”. Tornando-se uma epopéia sentimental, Scorsese termina sua maior obra-prima com os merecidos aplausos de pé para o verdadeiro mestre do espetáculo e ficção do cinema. E com isso, Scorsese não apenas homenageia Méliès de uma forma nunca antes vista, mas de modo geral: o cinema.
Um comentário:
Parabéns por essa crítica, querido. Muito esclarecedora e harmônica, sem se distanciar da emoção e do agradecimento à Martin Scorsese.
abs
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