18 de janeiro de 2012

Precisamos Falar Sobre o Kevin



We need to talk about Kevin, Inglaterra/Estados Unidos, 2011Direção: Lynne Ramsay. Roteiro: Lynne Ramsay e Rory Kinnear, baseado no livro de Lionel Shriver. Elenco: Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller, Jasper Newell, Rock Duer, Ashely Gerasimovich, Siobhan Fallon, Alex Manette, Kenneth Franklin. Duração: 112 minutos.

De certa forma, Precisamos Falar Sobre o Kevin une-se a Beautiful Boy para explorar outro campo no que diz respeito a tragédias familiares. Enquanto a maioria dos filmes do gênero buscam um entendimento nas razões do rapaz e o porquê de suas ações, os dois filmes focam nas conseqüências das ações do assassino na vida de seus pais, na instabilidade familiar que essas ações criam e como a vida depois disso não sobrevive aos olhos acusadores da sociedade.

Portanto, é interessante constatar que Precisamos Falar Sobre o Kevin não apenas acerta em conseguir mostrar o lado da mãe do culpado pelo massacre de dezenas de crianças em uma escola, mas também quais foram as ações que o levaram a isso.

Escrito por Lynne Ramsay (também diretora do filme) e Rory Kinnear, baseado no livro de Lionel Shriver, a história acompanha a criação do personagem título por sua mãe Eva (Tilda Swinton), que tem um relacionamento complicado e truculento com seu primogênito por esse ter feito parte de uma gravidez inesperada e indesejada. Paralelamente, somos guiados por Eva tentando encontrar uma nova vida e um novo emprego em uma sociedade que a odeia. O motivo dessa situação vem do seu passado com Franklin (John C. Reilly) e seus dois filhos Kevin (Ezra Miller) e Lucy (Ursula Parker). Aos poucos, vamos descobrindo o porquê do recomeço de Eva e o quanto isso é sua responsabilidade.


Investindo num clima tortuoso para sua personagem principal desde o primeiro minuto, em que somos apresentados ao vermelho sendo parte de forma constante na vida de Eva, Ramsay é elegante ao trabalhar em cima do trauma vivido pela personagem e o quanto essa se acha culpada. Se observarmos Eva entrar sempre insegura em entrevistas de emprego e com olhares atentos e acusativos quanto a sua pessoa, vemos também a personagem com olhares de culpa apenas por tentar se restabelecer na sociedade. Assim, é tocante ver a personagem levar um soco no nariz e quando alguém vem socorrê-la, levar uma resposta quase seca: “A culpa foi minha, obrigado!”.

Igualmente interessante é a montagem realizada por Joe Bini (parceiro recorrente de Herzog) que consegue desenvolver tanto a trama de Eva procurando um recomeço quanto a história da criação de Kevin com grande competência. Se num momento temos a personagem reconhecendo certas pessoas na rua, no outro vemos aquelas pessoas diante de alguma fatalidade que Eva presenciou – o que já começa a ligar os pontos para o espectador que não leu o livro de Shriver.

Porém, é a direção de Ramsay que é o grande destaque do longa ao retratar não apenas a culpa de Eva nos tempos atuais, mas o seu passado e sua gravidez indesejada. É interessante notar como Eva, por exemplo, desiste do seu curso de gravidez e vemos no momento em que caminha: um corredor com dezenas de crianças gritando e passando a sua frente – numa clara alusão do incômodo de uma gravidez e o quanto as crianças são colocadas em primeiro lugar. Da mesma maneira, crianças passando com mascaras de terror ou o som do choro de seu filho abafado por uma britadeira ressaltam a visão provocadora de Ramsay para sua personagem principal.

Visão que só tem um grande problema em encontrar solidez no desenvolvimento de seu personagem título, ao tratar Kevin sempre como uma criança diabólica e que parece ter sido dublê de Macaulay Culkin em “Anjo Malvado”. Não que seja errada a decisão da diretora de retratar a situação pelos olhos da mãe, revelando-nos um lado parcial que só apresenta as ações maldosas de seu filho. Mas acaba soando muito forçado vermos Kevin praticar ações que não condizem em nada com uma criança normal, e nem seu médico ou o colégio em que estuda parar, pensar e refletir: “Ei, espera aí, acho que tem algo de errado com essa criança. Quem sabe um psicólogo?”.

Pois, Kevin desde criança acaba dando todos os tipos de indícios de anormalidade, algo que torna toda a situação inverossímil demais. Notem como a criança só fala frases como “morre” ou “mate” quando joga videogame com o pai ou repete apenas frases como “que idiotice” com um olhar sinistro em suas feições. Isso se não observarmos que é uma criança que não fala com quase 4 anos de idade e ainda usa fralda aos 6.

Logo, colaborando com esse tom dado ao personagem, Rock Duer (Kevin até os 6 anos) surge como se tivesse assistido vezes demais o último longa de “Conan” e retrata seu Kevin apenas com um olhar maldoso e com as sobrancelhas levantadas. Da mesma forma, Jasper Newell (Kevin dos 6 aos 8) dá o mesmo tipo de desenvoltura para seu personagem, não só aproveitando os tiques realizados pelo pequeno Duer, como também sendo o responsável pelas frases monossilábicas que só retratam seu aspecto sociopata e por risadinhas deslocadas e insolentes soltadas pelo ator de vez em quando.

Fica a cargo de Ezra Miller desenvolver Kevin de forma assustadora e competente ao colocar suas frases sempre com calma e pausadamente na narrativa e explorar o medo que causa em Eva – observe como Kevin se diverte quando dissimula falsas emoções com seu pai apenas para olhar sua mãe com olhar desafiador. Já Tilda Swinton, menos impressionante que em outros trabalhos, ainda é competente ao dar a Eva um aspecto de cansaço e cumplicidade nos tempos atuais e seu desejo de entender as ações de seu filho – como podemos notar em suas idas na prisão. Tilda, ainda, realiza um bom trabalho ao mostrar que apesar do distanciamento dela com Kevin, a personagem ainda busca uma redenção. Portanto, é comovente ver Eva tentando restabelecer uma relação com o filho levando-o para passar um dia com ela ou quando lê uma história para Kevin na cama e fica sorridente ao trocar pela primeira vez uma cumplicidade marcante com ele.

Ainda que falhe aqui ou ali, Ramsay é provocadora e isso dá um desenvolvimento instigante ao longa-metragem. Temos o tic tac provocativo do relógio, o mesmo relógio que marca 12:00 quando vemos o passado de Eva e apenas muda para 12:01 quando retornamos ao presente – numa clara referência a personagem parada no tempo; a cor vermelha, que ressalta o clima de assassinato/morte no filme, não apenas visível na casa de Eva ou no carro da personagem, seguindo-a a todo lugar, mas também num supermercado quando a vemos tentar fugir de uma mãe e por trás dela dezenas e dezenas de extratos de tomates na cor vermelha, ressaltando o passado de Eva; e quando observamos a personagem pintando um dos quartos de azul na casa nova (mesma cor do quarto de Kevin).

A mesma elegância de algumas decisões de montagem e direção, como na cena em que vemos Eva lavando o rosto e logo vemos Kevin ou quando a primeira conversa de Eva e Kevin na prisão é iniciada por uma cicatriz.

Mostrando uma coesão final inteligente e que acompanha de forma bela a narrativa até então, Ramsay fecha o filme com chave ouro: retratando um grande reaproximamento e dando respostas as atitudes de Kevin, ainda que possa soar involuntário. É fantástico notarmos não só a direção para a luz que Eva toma no final (algo que ressalta um recomeço), mas também sua pergunta para o filho: “Por quê?”. Se chegarmos ao clímax observando que a pergunta não foi feita com relação ao massacre, mas em relação da sobrevivência, notamos que presenciamos algo marcante. E, isso, nenhum filme como Beautiful Boy nos provocou em seu final.

(4 estrelas em 5)

3 comentários:

Márcio Santos disse...

Oi Andrey. Excelente crítica. Você tem razão, pode divulgar que ficou ótima mesmo :)
Dois dos detalhes que mais me marcaram no filme (embora eu não tenha citado na minha critica) é a questão da cor do quarto e, principalmente, aquele terrivel momento em que eles saem para um momento de 'aproximação' e ele aos poucos destroi toda a esperança dela. Um belo filme. Mas cruel até demais.

Eduardo Monteiro disse...

Andrey, bom texto. A questão do vermelho recorrente, pra mim, ainda vai além. Não é só a cor que é recorrente, mas as formas como ela surge são bastante sugestivas. Tanto o tomate quanto a geleia ou as manchas de tinta têm uma aparência bastante sanguinária. E como a violência dos atos de Kevin praticamente não é mostrada, acho a sugestão bacana, incômoda.

E como fui ver o filme sem pretensão de escrever, vi com bastante tranquilidade e reparei uma infinidade de sutilezas. Como comentei no Twitter, acho o figurino do Kevin adolescente genial. Todas as roupas dele são pequenas, apertadas e com estampas infantis, como se a mãe já tivesse desistido mesmo do garoto. Como a cena do minigolf e do jantar provam, é surreal imaginar os dois saindo juntos para comprar roupas, ou a mãe organizando uma festa de aniversário para o rapaz, na qual ele ganharia roupas melhores. Não dá pra imaginar mesmo.

Há também, claro, algumas outras rimas que não consegui atribuir sentido. A cena de Kevin roendo as unhas e dispondo-as na mesa é bastante semelhante àquela na qual a mãe come o omelete dos ovos quebrados, retirando pedaços de casca da boca e organizando-as na mesa - mas não tive criatividade para relacioná-las. Mesmo assim, gosto da criatividade da direção de Ramsay, especialmente em função de sua inexperiência.

Um abraço!

Mateus Denardin disse...

Também acho impressionante a tradução visual que Ramsay faz do livro, e há tantos simbolismos e metáforas brilhantes (para a ligação entre mãe/filho) que não valeria repetir aqui. Vi que você defende bem sua opinião de um Kevin inverossímil, mas, com a mesma análise, acho isso acertado. A mãe raramente procurou conhecer melhor o filho e se relacionar com ela; e a imagem que ela guarda é de uma pessoa essencialmente má. Esperar que outras pessoas percebessem que Kevin tem algum distúrbio não parece valer aqui, uma vez que, a não ser as lembranças da mãe, não temos envolvidas as visões de outras pessoas -- e assim Eva poderia tomar aquilo como uma simples e pura -- e unidimensional -- vingança contra ela mesma (e se ele fez algo contra outros, foi tentando atacá-la -- como, ao ser preso, ele fita a mãe pelo vidro do carro). Enfim, trabalho brilhante. É bom ver quando livros excelentes resultam em adaptações tão boas ou melhores que eles.