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The Neon Demon. França/Dinamarca/EUA, 2016. Direção: Nicolas
Winding Refn. Roteiro: Nicolas Winding Refn, Mary Laws e Polly Stenham. Elenco:
Elle Fanning, Jena Malone, Bella Heathcote, Abbey Lee, Karl Glusman, Desmond
Harrington, Charles Baker, Christina Hendricks e Keanu Reeves. Duração:
1h58min.
– É nesse mundo que vivemos. As condições mudam, e nós nos transformamos. [Monstros Invisíveis, Chuck Palahniuk].
Ao tratar o vício estético como uma
devassidão sintomática que se alastra pela nossa mente em ondas cerebrais que teriam
a missão de proteger nosso autocontrole, no livro Monstros Invisíveis, Chuck
Palahniuk brinca com a desfiguração, considerando-a uma epítome do espetáculo:
quanto vocês pagariam para ver isso? Se para outro autor americano celebrado,
David Foster Wallace, as cicatrizes representavam a crueza do pensamento humano
individual, para Palahniuk, elas expõem nossos ecos sociais. É a principal
intenção de Nicolas Winding Refn se aventurar por essa natureza: o consumo
levado à última potência. Demônio de Neon não se restringe ao passeio pela
estética; ele tenta racionalizá-la, na única forma que poderia: por meio da
imagem.
Julgando a juventude de Jesse como
uma interferência àquele mundo e àquelas pessoas, Refn representa
brilhantemente seu ensaio indigesto com a
chegada da protagonista na agência dirigida pela personagem de Christina
Hendricks. Observe, por exemplo, como o formato dos símbolos nas paredes
ressaltam uma comparação com genitálias femininas, como se todo aquele
território fosse construído em razão da quantidade de vaginas que solidificou esse
império. Essa espetacularização tomando o corpo feminino como base também é
evidenciada quando modelos se enfileiram tal qual manequins, produtos
designados para entretenimento, antes de entrar na passarela.
Elle Fanning, na melhor atuação de
sua carreira, é a vantagem de Refn. Sua pele branca e seus figurinos, os quais
acentuam a pureza da personagem em roupas mais claras, contrastam com os
costumes estéticos de pessoas já sugadas por aquele mundo. A indicação mais
clara que Refn produz é quando Jesse entra no clube que Ruby a leva pela
primeira vez e todos ao seu redor estão sem cor, sem vida, apenas repetindo
movimentos pré-estabelecidos. É a protagonista que ainda brilha naturalmente no
salão. Igualmente, na sua primeira experiência profissional, o diretor ressalta
aos poucos essa perda de ingenuidade por parte da personagem de Fanning – não
deixe de perceber o figurino, novamente, que destaca a roupa preta do fotógrafo
com a roupa clara de Jesse, além de notar o quanto a imagem produz a sensação
de corrompimento.
A sedução é o meio, não o clímax,
evidencia Refn. No ensaio, Jesse e o fotógrafo estão quase numa tela branca,
que ainda não foi preenchida, com infinitas possibilidades. Enquanto ele vai
pedindo para ela tirar sua roupa e abdicar de sua doçura, a câmera de Refn a
acompanha, achatando mais e mais a imagem até quase comprimi-la por completo.
Ela finalmente se transforma.
– Pássaros.
Eu escrevo:
pássaros.
pássaros comeram meu rosto.
E começo a rir.
Brandy não ri e pergunta:
- O que significa isso?
Eu continuo rindo e escrevo:
pássaros.
pássaros comeram meu rosto.
E começo a rir.
Brandy não ri e pergunta:
- O que significa isso?
Eu continuo rindo e escrevo:
eu estava dirigindo na via expressa.
E continuo rindo.
alguém disparou um tiro de fuzil calibre trinta.
a bala arrancou toda a mandíbula do meu rosto.
Ainda rindo.
vim para o hospital, eu escrevo.
não morri.
Rindo.
eles não conseguiram colocar meu queixo de volta, porque as gaivotas comeram tudo.
Então paro de rir. [Chuck Palahniuk, Monstros Invisíveis]
Esse domínio de Refn
sobre sua imagem não faz com que diálogos expositivos sejam necessários para complementar
a trama. Assim, se a entrega absoluta pela arte, por parte de Jesse, é
visualizada em seu primeiro instante atrás da lente, na visão de seu namorado,
quando ela é fotografada morta, o oferecimento do seu corpo é levado ao extremo
quando o diretor insinua outras modelos a cercando, como abutres, esperando
para fazer sua refeição. Ao contrário de Kay, que perde sua mandíbula, seu
perfil, sua presença, em Monstros Invisíveis, aqui, em Demônio de Neon, Jesse
perde seu corpo, ao ser acuada. Ruby, Gigi e Sarah são as caçadoras estimuladas
pela promessa do retorno aos velhos tempos. Elas querem roubar exatamente a
única coisa que desapareceu delas: a juventude. De diferentes formas. Ruby quer
o corpo de Jesse, Sarah quer seu sangue, Gigi quer sua pele.
Ao contrário de
Starry Eyes, onde os flashes da fama eram as principais insanidades da
indústria, é quem divide a fama ou quem está à procura dela, em Demônio de
Neon, que se esgueira para avaliar a carne fresca. Assim, quando Jesse está
sentada no capô do carro, acompanhada de seu namorado, e ela discorre sobre a
lua, algumas coisas sublinham o talento de Refn como diretor: a principal
delas, o pensamento narrativo. Ali, o cineasta passeia pela base psicológica do
seu filme. Jesse afirma que na infância sempre pensou no satélite como um
grande olho, sempre a observando. Quando ambos falam sobre se Jesse deve ou não
mentir, lá está a lua, "analisando-a" no canto da imagem. Quando ela está íntima
de seu namorado e ele tenta a proteger, só há os dois em cena. O grande olho
não está lá. A última vez que esse olho é visto? Bem, talvez a metáfora seja
ainda mais incrível, quando é exatamente um olho que sai da boca de Sarah na
cena final. A diferença é que o observador agora é outro.