5 de setembro de 2016

Aquarius

Idem, Brasil/França, 2016. Direção: Kleber Mendonça Filho. Roteiro: Kleber Mendonça Filho. Elenco: Sônia Braga, Humberto Carrão, Paula de Renor, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Barbara Colen. Duração: 2h22min.

Existe um elo que interliga O Som ao Redor e Aquarius e que reside em duas peças primordiais do tabuleiro de Kleber Mendonça Filho: a primeira, a memória conservada; a segunda, a reclusão e o Brasil social como coadjuvante. No filme de 2012, a reclusão era através da falsa segurança da classe média e as rachaduras no desequilíbrio capital, enquanto, no filme de 2016, Kleber transforma a jornada de uma única pessoa em uma introspectiva resistência ao abandono e a luta por direitos básicos.

Deste modo, enquadrando a personagem de uma inesquecível Sonia Braga à frente do edifício Aquarius, imponente, como se ela fosse a única salvação daquela construção, e rasgando o projeto de uma construtora, Kleber não ressalta apenas uma arquitetura, mas uma fachada para a sociedade brasileira que tenta resistir às grandes companhias.

Seguindo Clara como nossa referência, o plano em que o diretor denuncia os empreendedores chegando, enquanto a protagonista curte seu descanso numa rede, é bem ilustrativo. A pernambucana é uma remanescente, em Aquarius. Ela é o que ficou da história daquele humilde apartamento de Boa Viagem, ao lado das mobílias velhas, da cabeceira em que tia Lúcia recebia sexo oral e dos envelhecidos discos de vinil – os grandes companheiros da personagem por sua jornada.  

Esse espelho entre o novo e o antigo é um dos tons mais importantes do filme. Iniciando pela festa de 70 anos da tia Lúcia, o design de produção é brilhante ao expor o apego pelos mínimos detalhes: desde as garrafas de Brahma na mesa de jantar, as cadeiras, as músicas, as placas dos automóveis, a pouca movimentação na rua até as armações dos óculos dos convidados. O início em fotos P&B contrasta perfeitamente com o urbanismo, igualmente. Não só quando Kleber escancara o quão pouco aquele prédio mudou, destacando as garagens precárias que resistiram bravamente ao tempo, como também é sábio ao expor a movimentação de poucos carros na praia para o alto trânsito numa ponte movimentada, numa clássica mudança de cenário de épocas.

Essa faceta entre o clássico e o atual também é sublinhado em outras três cenas extraordinárias: Clara comprimida na porta de uma loja de eletrônicos até a chegada de um velho amigo, a cena em que ela coloca um rock de sua juventude no vinil e no volume máximo para contrapor o eletrônico ensurdecedor de uma festa do apartamento de cima, além de, claro, a cena em que uma jornalista pergunta sobre o mp3. Neste momento, aliás, Kleber aproveita a crítica não só ao jornalismo, mas a preocupação das pessoas em pouco ouvir e muito falar – algo que, diga-se de passagem, ele pontua durante a narrativa com quem divide a tela com Clara.    

Na sociedade de Aquarius, a distância e a proximidade são cúmplices. E é nessa elucidação que o filme caminha para sua cena mais linda: quando um dos filhos de Clara, sem dizer uma palavra, mostra uma dedicatória num livro para Ana Paula. A base do poder de uma imagem, sem diálogos que tornariam o momento piegas, está presente ali como poucas vezes o cinema brasileiro se permitiu.

Afinal, há algo caloroso no pessimismo de Kleber Mendonça Filho. Um 'q' de resistência que afeta entusiastas e detratores. Em uma de suas principais características, Aquarius lida com a liberdade sexual e os princípios de empoderamento feminino de forma inteligentíssima. Se no aniversário de Lúcia, a personagem relembra de quando ela transava com um rapaz numa cômoda do apartamento, o sexo oral na mulher se mostra recorrente, ratificando que, aqui, é o prazer feminino que está em questão. O objeto sexual é o corpo masculino. É o pênis que a câmera evidencia nas cenas de sexo, ereto ou não, nas orgias ou nos atos casuais.

Naturalizando a nudez, Kleber é honesto em tratar o sexo como uma necessidade física, desvirtuado do amor. É marcante, por exemplo, quando Clara pede para que o garoto de programa não toque na mama debilitada pelo câncer – seu único lado vulnerável.

É intrigante, igualmente, quando traços de horror são ressaltados na cena do sonho de Clara: uma mulher não acostumada com fraqueza, sentindo-se impotente, sem braços e sangrando em sua cama.
  
Acostumada sempre a levantar a cabeça diante de adversidades, o único momento que  ela acaba revelando sua frustração em sua totalidade é no clímax de Aquarius. Com seu diretor deixando claro as maiores raízes do filme a partir do terceiro ato – a divisão entre classes, com um monólogo envolvente de Clara sobre formação humana e a elite brasileira –, Aquarius se aventura introspectivamente nos perigos de confrontar o poder.

Porque os donos dos empreendimentos Bonfim são cupins sociais que corroem o que temos de nossas histórias e nossas lembranças, na visão de Kleber. E a única saída que nos resta é jogar isso na mesa – deixando claro que, não, não temos medo de ir à luta. 


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