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Idem, Brasil/França, 2016. Direção: Kleber Mendonça Filho. Roteiro: Kleber
Mendonça Filho. Elenco: Sônia Braga, Humberto Carrão, Paula de Renor, Maeve
Jinkings, Irandhir Santos, Barbara Colen. Duração: 2h22min.
Existe
um elo que interliga O Som ao Redor e Aquarius
e que reside em duas peças primordiais do tabuleiro de Kleber Mendonça Filho: a
primeira, a memória conservada; a segunda, a reclusão e o Brasil social como
coadjuvante. No filme de 2012, a reclusão era através da falsa segurança da
classe média e as rachaduras no desequilíbrio capital, enquanto, no filme de
2016, Kleber transforma a jornada de uma única pessoa em uma introspectiva
resistência ao abandono e a luta por direitos básicos.
Deste
modo, enquadrando a personagem de uma inesquecível Sonia Braga à frente do
edifício Aquarius, imponente, como se ela fosse a única salvação daquela construção,
e rasgando o projeto de uma construtora, Kleber não ressalta apenas uma
arquitetura, mas uma fachada para a sociedade brasileira que tenta resistir às
grandes companhias.
Seguindo
Clara como nossa referência, o plano em que o diretor denuncia os
empreendedores chegando, enquanto a protagonista curte seu descanso numa rede,
é bem ilustrativo. A pernambucana é uma remanescente, em Aquarius. Ela é o que ficou
da história daquele humilde apartamento de Boa Viagem, ao lado das mobílias
velhas, da cabeceira em que tia Lúcia recebia sexo oral e dos envelhecidos
discos de vinil – os grandes companheiros da personagem por sua jornada.
Esse
espelho entre o novo e o antigo é um dos tons mais importantes do filme. Iniciando
pela festa de 70 anos da tia Lúcia, o design
de produção é brilhante ao expor o apego pelos mínimos detalhes: desde as
garrafas de Brahma na mesa de jantar, as cadeiras, as músicas, as placas dos
automóveis, a pouca movimentação na rua até as armações dos óculos dos
convidados. O início em fotos P&B contrasta perfeitamente com o urbanismo,
igualmente. Não só quando Kleber escancara o quão pouco aquele prédio mudou,
destacando as garagens precárias que resistiram bravamente ao tempo, como
também é sábio ao expor a movimentação de poucos carros na praia para o alto
trânsito numa ponte movimentada, numa clássica mudança de cenário de épocas.
Essa
faceta entre o clássico e o atual também é sublinhado em outras três cenas
extraordinárias: Clara comprimida na porta de uma loja de eletrônicos até a
chegada de um velho amigo, a cena em que ela coloca um rock de sua juventude no
vinil e no volume máximo para contrapor o eletrônico ensurdecedor de uma festa
do apartamento de cima, além de, claro, a cena em que uma jornalista pergunta
sobre o mp3. Neste momento, aliás, Kleber aproveita a crítica não só ao
jornalismo, mas a preocupação das pessoas em pouco ouvir e muito falar – algo
que, diga-se de passagem, ele pontua durante a narrativa com quem divide a tela
com Clara.
Na
sociedade de Aquarius, a distância e a proximidade são cúmplices. E é nessa
elucidação que o filme caminha para sua cena mais linda: quando um dos filhos
de Clara, sem dizer uma palavra, mostra uma dedicatória num livro para Ana
Paula. A base do poder de uma imagem, sem diálogos que tornariam o momento
piegas, está presente ali como poucas vezes o cinema brasileiro se permitiu.
Afinal,
há algo caloroso no pessimismo de Kleber Mendonça Filho. Um 'q' de resistência
que afeta entusiastas e detratores. Em uma de suas principais características, Aquarius
lida com a liberdade sexual e os princípios de empoderamento feminino de forma inteligentíssima.
Se no aniversário de Lúcia, a personagem relembra de quando ela transava com um
rapaz numa cômoda do apartamento, o sexo oral na mulher se mostra recorrente, ratificando
que, aqui, é o prazer feminino que está em questão. O objeto sexual é o corpo
masculino. É o pênis que a câmera evidencia nas cenas de sexo, ereto ou não,
nas orgias ou nos atos casuais.
Naturalizando
a nudez, Kleber é honesto em tratar o sexo como uma necessidade física,
desvirtuado do amor. É marcante, por exemplo, quando Clara pede para que o
garoto de programa não toque na mama debilitada pelo câncer – seu único lado
vulnerável.
É
intrigante, igualmente, quando traços de horror são ressaltados na cena do
sonho de Clara: uma mulher não acostumada com fraqueza, sentindo-se impotente, sem
braços e sangrando em sua cama.
Acostumada
sempre a levantar a cabeça diante de adversidades, o único momento que ela acaba revelando sua frustração em sua
totalidade é no clímax de Aquarius. Com seu diretor deixando
claro as maiores raízes do filme a partir do terceiro ato – a divisão entre
classes, com um monólogo envolvente de Clara sobre formação humana e a elite
brasileira –, Aquarius se aventura introspectivamente nos perigos de confrontar
o poder.
Porque
os donos dos empreendimentos Bonfim são cupins sociais que corroem o que temos
de nossas histórias e nossas lembranças, na visão de Kleber. E a única saída
que nos resta é jogar isso na mesa – deixando claro que, não, não temos medo de
ir à luta.
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