26 de setembro de 2014

Mesmo Se Nada Der Certo

Begin Again, EUA, 2013. Direção: John Carney. Roteiro: John Carney. Elenco: Keira Knightley, Mark Ruffalo, Adam Levine, Hailee Steinfeld, James Corden, Mos Def, Cee Lo Green, Catherine Keener. Duração: 104 min.

Algumas das perguntas primordiais que uma narrativa pode traçar são: o que trouxe os personagens até aquele momento e como chegaram até lá; ou melhor, com quais seqüelas e cicatrizes? O que cada um visualiza quando se depara com um momento fora da curva e como percebe as coisas ao seu redor? No excepcional Inside Llewyn Davis, por exemplo, isto era exatamente o cerne do longa-metragem: dentro da mente do protagonista, necessitávamos compreender a fuga final de seus sonhos. A mesma melancolia que guiava John Carney na obra-prima Apenas uma Vez, onde o sacrifício dos personagens deixava a música como pano de fundo e um desabafo. Mesmo Se Nada Der Certo nasce como um acréscimo à lista, nesta perspectiva, ao interligar numa só trama: sonhos, perdas, intimidade, a arte e a valorização dos sentimentos em canções. É um filme em que as letras são indicações sobre quem são aquelas pessoas vivendo naquela realidade.

E é mantendo-se fiel ao seu maior êxito narrativo que Carney acerta em cheio ao deixar as canções como pano de fundo, nunca o principal atrativo. Pois, criando uma obra íntima, natural e crível, o cineasta valoriza as questões capitais levantadas pelo longa-metragem a todo o momento, fazendo com que seja compreensível as conseqüências de cada ação tomada a partir do segundo ato. Mantendo-nos próximos dos personagens com sua câmera, o diretor consegue transmitir em uma única seqüência tudo o que devemos saber sobre alguém - assim, analise o primeiro contato com a vida de Dan: o uísque é nossa primeira referência. Num jogo de foco eficiente, onde o protagonista só aparece ao fundo, notamos o seu vício e desânimo de imediato, numa simplicidade deliciosa. Da mesma forma, logo depois, o passeio que o diretor confere abordo do veículo de Dan nos revela a natureza da tristeza - nostálgico e infeliz, carregando o uísque em um cantil, ele está em busca de algo que o entusiasme, uma canção que lhe traga de volta, mas nunca a encontra. A mesma nostalgia e apego ao passado que podem ser visualizadas no próprio carro em que ele está e no seu prazer pelo velho toca-fitas, bem como o relacionamento com sua filha (o olhar julgador para as roupas e a convidando para um sorvete são bons exemplos).

E se Dan vive no passado, Gretta é exatamente o seu oposto. Norteando-se pelo relacionamento fracassado com seu ex-namorado, a personagem de Keira Knightley se orienta por sua frustração momentânea. É lindíssimo, igualmente, perceber como as fases de um pós-romance são encontradas marcadas no semblante de Gretta: a dedicação aos instantes de felicidades vividos, a necessidade de entender o erro, se foi dela ou se foi dele, os ruins aparecendo aos poucos, o preço da fama, as viagens e as respostas inseridas nas canções. Tudo serve como um diagnóstico para nos envolvermos nos sintomas dela e quais são as razões que a levaram a ser (literalmente) a pessoa que ela canta em sua primeira música: no metrô, sozinha, com uma mala, pensando se vai embora ou se fica. Um paralelo que se torna ainda mais comovente, aliás, quando ela se vê debaixo de uma placa de saída, no show do ex-namorado, sem saber se dá um passo para frente ou para trás. 

Afinal, ainda que suas realidades sejam temporalmente divergentes, as impressões entre os dois protagonistas se assemelham. E, como não poderia deixar de ser, a música os torna próximos; íntimos. É ela que os une, a paixão por ela. Sob esta ótica, a montagem de Andrew Marcus tem um papel fundamental em sintetizar o segundo em que essas duas pessoas se encontram. O foco em Dan, na primeira vez que ouve Gretta, por exemplo, é inesquecível ao expor numa orquestra imaginável a visualização de um potencial - sob a mente de um produtor. Do mesmo modo, a oferta imediata feita para ela sentada no sofá é quase cômica, por sabermos do seu prévio desespero.

Ao mesmo tempo, nunca soando forçada ou exagerada, a montagem estabelece cada minuto de maneira concisa. Assim, o espectador sente que esta assistindo a duas pessoas se apaixonarem em tempo real, lentamente e naturalmente. E uma das grandes cenas que evidencia isso é o brilhante passeio de Dan e Gretta, onde um adaptador de fones faz com que ambos andem por Nova York na calada da noite com suas playlists pessoais. E é mágico quando avaliamos como a situação é feita para metaforicamente os passados se cruzarem num presente aventureiro - a referência à Casablanca é absolutamente perfeita, neste caso, com As time goes by. Ou For Once in My Life numa balada. Duas músicas que refletem exatamente o espírito de seus protagonistas enquanto são executadas.

A música, enfim, é o que retrata a aproximação. Toda a narrativa de Carney está inserida nesse contexto. Desde a crítica aos adolescentes monossilábicos modernos, a autenticidade perdida, produtos midiáticos e o uso das músicas em filmes (num belo modelo de metalinguagem) até chegar ao recado na secretária eletrônica de Dave: com o celular servindo como microfone e a música como o desabafo, o recurso final. Para o cineasta, as respostas estão em acordes e versos. Observe, assim sendo, a aproximação final entre pai e filha, na música, com a junção do baixo e da guitarra.

Claro que Dan continuará carregando a aliança, embriagando-se com as lágrimas de algum revés, mas ninguém poderá tirar de sua existência o instante em que ouviu algo que mudou sua vida. Algo que foi responsável por reascender seu entusiasmo pela simplicidade (garotos como back vocals, sutiã como abafador, fuga da polícia, tocar no meio do lixo da cidade) e reorganizar sua vida com a filha (os dois comendo sorvete juntos, a mudança no figurino, o passado que tanto amava ressurgindo). Algo que é resumido numa jovem música, a qual o braço de Dan não deseja mais soltar, no último momento juntos. 


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