Idem, Brasil, 2013. Direção: René Sampaio. Roteiro: Victor
Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho, baseado na música escrita por
Renato Russo. Elenco: Fabrício Boliveira, Ísis Valverde, Felipe Abib, César
Troncoso, Marcos Paulo, Rodrigo Pandolfo, Antonio Calloni, Cinara Leal, Juliana
Lohmann, Léo Rosa, Flávio Bauraqui. Duração: 100 min.
É fácil ficar receoso
com Faroeste Caboclo quando há dezenas de obras de gosto duvidoso chegando aos
cinemas e pegando carona com o momento vivido pelo cinema nacional.
Principalmente no momento em que vemos Somos Tão Jovens, filme que abordava um
período da carreira de Renato Russo, transformar-se numa obra muito mais de
culto ao compositor do que uma obra cinematográfica significativa. Uma
surpresa, portanto, observar como o estreante René Sampaio não se limita a
trazer a canção imortalizada pela Legião Urbana de forma literal e transforma a
história de João em algo tão raro quanto a música de Renato Russo: uma crítica
sutil ao preconceito em um mundo conturbado.
Escrito por Victor
Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho, a história acompanha a trajetória
de João de Santo Cristo que, após a morte de seus pais, ruma até Brasília e se
alia ao primo Pablo. Em uma de suas missões para o parente, porém, ele quase é
pego pela polícia e se esconde no apartamento de uma jovem de classe alta
chamada Maria Lúcia, que se apaixona pelo estranho. A partir daí, os dois
começam um relacionamento condenado pelos amigos e pelo pai da moça, enquanto
João começa a finalmente se dar bem em seu negócio: o tráfico de cocaína.
Estabelecendo a
atmosfera de sofrimento que João está inserido desde o começo, Sampaio já
demonstra, através de closes nos
olhos e nas armas, a vida do personagem chegando ao fim em uma sequência que
parece saída de um western.
Evidenciando uma juventude perturbada e cheia de ódio, o diretor nunca se
restringe ao mostrar uma criança enterrando a mãe ou não pestanejando ao matar
e cuspir em cima de alguém. Além do mais, o filme nunca surge muito mais
explicativo do que deveria ser: assim, apenas somos informados onde estamos por
meio de sinalizações, sem que personagens precisem falar sobre o lugar ou que
letras garrafais indiquem nossa localização na história. Da mesma forma, João
não precisa dizer que está numa situação complicada em Brasília, pois o
observamos andando em caminhões fretados e pedindo ajuda para um primo
distante.
Todavia, muito mais do que
isso, a direção de René Sampaio é segura nas cenas de perseguição, em um
angustiante estupro e em planos mais perspicazes – a sequência em que a droga
vai passando de mão em mão numa festa é muito boa e a câmera instável no
momento em que João volta a segurar uma arma é belíssima. Algo que se
complementa, diga-se de passagem, com a ótima montagem de Marcelo Moraes: observe,
por exemplo, a elegância da transição do tiro do João com o aprendizado com o
pai ou quando o protagonista está correndo da polícia e nos é mostrado qual o
motivo do medo (aliás, quem não correria pela própria vida num cenário desses,
quando o pai foi assassinado por um policial?). Ao mesmo tempo, seria criminoso
não ressaltar as ótimas elipses,
destacando-se uma passagem de tempo no poço e outra pela Febem.
O roteiro também merece
aplausos por não seguir completamente a risca a música e, ainda, por construir
um cenário em que o Punk rock começa a florescer (o “americanês” nos diálogos
das rodas de violão, idem), momento em que temos jovens revolucionários, onde a
maconha e a rebeldia são amigas íntimas e há um grande contraste quanto às
etnias e às classes. E ao mesmo tempo em que apresenta problemas quanto à época
dos acontecimentos – espero estar enganado, mas o papel entregue a João em
determinado instante é feito no computador, não?! – e algumas citações risíveis
(“Logo os malucos da cidade souberam da
novidade...”), isto é ofuscado junto à direção nas saídas para trechos da
canção: muito interessante como a bíblia é importante para Jeremias e como o
contraste entre pai e filha é feito através da música.
A fotografia de Gustavo
Hadba, por sua vez, é um dos grandes méritos do longa-metragem. E se é bem
pertinente o mundo obscuro da rebeldia ao som do Aborto Elétrico mergulhado nas
sombras, ainda mais é a constante presença do verde na narrativa – inclusive,
moldando o futuro dos personagens – e as distinções entre um ambiente e outro. Avalie, sob este olhar, como a casa de
Jeremias sempre aparece mais clean do
que o amarelo opressivo da residência de Pablo, escancarando suas diferenças.
Do mesmo modo, além do amarelo, os tons verdes ganham profunda importância em
advertir o momento em que João de Santo Cristo se encontra – basta avaliar dois
exemplos: no primeiro deles, o verde presente no quarto de Maria Lúcia,
enquanto na sala, observamos, atrás do pai da moça, o mesmo tom amarelo que
víamos com Pablo – alguém que João quer se distanciar; noutro, as paredes
manchadas da prisão são donas de um verde mais escuro, ao passo que o lado de
fora, onde Maria Lúcia surge, expõe o branco (que vimos com Jeremias em outra
ocasião). Aliás, note que o último contato que ela faz com João,
“abandonando-o”, é marcado por ela saindo para a claridade do lado de fora –
como se ela finalmente tivesse deixando o passado para trás.
Mas Faroeste Caboclo
não é somente uma façanha técnica. Construindo seu João de Santo Cristo com
sabedoria e o deixando com um constante olhar de menino perdido, Fabrício
Boliveira estabelece um complemento à emoção à flor da pele de Maria Lúcia. Sua
flor de madeira, além do mais, assinala perfeitamente seu estado de espírito. Já
Ísis Valverde imprime mais uma vez seu talento em um papel que requer muito dela
emocionalmente, o que ela responde genuinamente.
Mostrando-se maduro o
suficiente para cortar partes que achava necessário sem se preocupar com a ira
de fãs fervorosos, René Sampaio desponta como um nome notável e promissor do
cinema nacional em sua estreia em longas. Seu preciosismo técnico e a atenção
para os mínimos detalhes de sua produção (Maria Lúcia indo encontrar seu amor
com uma blusa verde) só não são maiores de que sua mensagem. E a história de
João de Santo Cristo, que tentou a sorte nos brilhos daquela cidade nova, assim
como quando ouvi a música pela primeira vez, não sairá tão cedo da minha
cabeça.
Um comentário:
Concordo, uma das gostas de que mais gosto é que João de Santo Cristo não é abrandado. Sobre a fotografia de Gustavo Hadba, você fez uma análise muito boa da paleta de cores que, admito, passou-me despercebido.
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