5 de junho de 2013

Faroeste Caboclo

Idem, Brasil, 2013. Direção: René Sampaio. Roteiro: Victor Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho, baseado na música escrita por Renato Russo. Elenco: Fabrício Boliveira, Ísis Valverde, Felipe Abib, César Troncoso, Marcos Paulo, Rodrigo Pandolfo, Antonio Calloni, Cinara Leal, Juliana Lohmann, Léo Rosa, Flávio Bauraqui. Duração: 100 min.

É fácil ficar receoso com Faroeste Caboclo quando há dezenas de obras de gosto duvidoso chegando aos cinemas e pegando carona com o momento vivido pelo cinema nacional. Principalmente no momento em que vemos Somos Tão Jovens, filme que abordava um período da carreira de Renato Russo, transformar-se numa obra muito mais de culto ao compositor do que uma obra cinematográfica significativa. Uma surpresa, portanto, observar como o estreante René Sampaio não se limita a trazer a canção imortalizada pela Legião Urbana de forma literal e transforma a história de João em algo tão raro quanto a música de Renato Russo: uma crítica sutil ao preconceito em um mundo conturbado.

Escrito por Victor Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho, a história acompanha a trajetória de João de Santo Cristo que, após a morte de seus pais, ruma até Brasília e se alia ao primo Pablo. Em uma de suas missões para o parente, porém, ele quase é pego pela polícia e se esconde no apartamento de uma jovem de classe alta chamada Maria Lúcia, que se apaixona pelo estranho. A partir daí, os dois começam um relacionamento condenado pelos amigos e pelo pai da moça, enquanto João começa a finalmente se dar bem em seu negócio: o tráfico de cocaína.

Estabelecendo a atmosfera de sofrimento que João está inserido desde o começo, Sampaio já demonstra, através de closes nos olhos e nas armas, a vida do personagem chegando ao fim em uma sequência que parece saída de um western. Evidenciando uma juventude perturbada e cheia de ódio, o diretor nunca se restringe ao mostrar uma criança enterrando a mãe ou não pestanejando ao matar e cuspir em cima de alguém. Além do mais, o filme nunca surge muito mais explicativo do que deveria ser: assim, apenas somos informados onde estamos por meio de sinalizações, sem que personagens precisem falar sobre o lugar ou que letras garrafais indiquem nossa localização na história. Da mesma forma, João não precisa dizer que está numa situação complicada em Brasília, pois o observamos andando em caminhões fretados e pedindo ajuda para um primo distante.

Todavia, muito mais do que isso, a direção de René Sampaio é segura nas cenas de perseguição, em um angustiante estupro e em planos mais perspicazes – a sequência em que a droga vai passando de mão em mão numa festa é muito boa e a câmera instável no momento em que João volta a segurar uma arma é belíssima. Algo que se complementa, diga-se de passagem, com a ótima montagem de Marcelo Moraes: observe, por exemplo, a elegância da transição do tiro do João com o aprendizado com o pai ou quando o protagonista está correndo da polícia e nos é mostrado qual o motivo do medo (aliás, quem não correria pela própria vida num cenário desses, quando o pai foi assassinado por um policial?). Ao mesmo tempo, seria criminoso não ressaltar as ótimas elipses, destacando-se uma passagem de tempo no poço e outra pela Febem.

O roteiro também merece aplausos por não seguir completamente a risca a música e, ainda, por construir um cenário em que o Punk rock começa a florescer (o “americanês” nos diálogos das rodas de violão, idem), momento em que temos jovens revolucionários, onde a maconha e a rebeldia são amigas íntimas e há um grande contraste quanto às etnias e às classes. E ao mesmo tempo em que apresenta problemas quanto à época dos acontecimentos – espero estar enganado, mas o papel entregue a João em determinado instante é feito no computador, não?! – e algumas citações risíveis (“Logo os malucos da cidade souberam da novidade...”), isto é ofuscado junto à direção nas saídas para trechos da canção: muito interessante como a bíblia é importante para Jeremias e como o contraste entre pai e filha é feito através da música.

A fotografia de Gustavo Hadba, por sua vez, é um dos grandes méritos do longa-metragem. E se é bem pertinente o mundo obscuro da rebeldia ao som do Aborto Elétrico mergulhado nas sombras, ainda mais é a constante presença do verde na narrativa – inclusive, moldando o futuro dos personagens – e as distinções entre um ambiente e outro.  Avalie, sob este olhar, como a casa de Jeremias sempre aparece mais clean do que o amarelo opressivo da residência de Pablo, escancarando suas diferenças. Do mesmo modo, além do amarelo, os tons verdes ganham profunda importância em advertir o momento em que João de Santo Cristo se encontra – basta avaliar dois exemplos: no primeiro deles, o verde presente no quarto de Maria Lúcia, enquanto na sala, observamos, atrás do pai da moça, o mesmo tom amarelo que víamos com Pablo – alguém que João quer se distanciar; noutro, as paredes manchadas da prisão são donas de um verde mais escuro, ao passo que o lado de fora, onde Maria Lúcia surge, expõe o branco (que vimos com Jeremias em outra ocasião). Aliás, note que o último contato que ela faz com João, “abandonando-o”, é marcado por ela saindo para a claridade do lado de fora – como se ela finalmente tivesse deixando o passado para trás.

Mas Faroeste Caboclo não é somente uma façanha técnica. Construindo seu João de Santo Cristo com sabedoria e o deixando com um constante olhar de menino perdido, Fabrício Boliveira estabelece um complemento à emoção à flor da pele de Maria Lúcia. Sua flor de madeira, além do mais, assinala perfeitamente seu estado de espírito. Já Ísis Valverde imprime mais uma vez seu talento em um papel que requer muito dela emocionalmente, o que ela responde genuinamente.

Mostrando-se maduro o suficiente para cortar partes que achava necessário sem se preocupar com a ira de fãs fervorosos, René Sampaio desponta como um nome notável e promissor do cinema nacional em sua estreia em longas. Seu preciosismo técnico e a atenção para os mínimos detalhes de sua produção (Maria Lúcia indo encontrar seu amor com uma blusa verde) só não são maiores de que sua mensagem. E a história de João de Santo Cristo, que tentou a sorte nos brilhos daquela cidade nova, assim como quando ouvi a música pela primeira vez, não sairá tão cedo da minha cabeça. 


                               

Um comentário:

Márcio Sallem disse...

Concordo, uma das gostas de que mais gosto é que João de Santo Cristo não é abrandado. Sobre a fotografia de Gustavo Hadba, você fez uma análise muito boa da paleta de cores que, admito, passou-me despercebido.