24 de outubro de 2016

Mostra de São Paulo 2016– Dias 3 e 4 – 22 e 23 de outubro


Nesses dois novos dias de festival, o que se destacou foi a busca pela imagem alternativa, a fuga do óbvio, que muitos diretores buscam em seus filmes mais experimentais - às vezes, funciona, como o caso da obra de Bressane; outras, não. A seguir, os nove filmes aos que assisti nesses dias 3 e 4 da Mostra de SP:


11. Fica Mais Escuro Antes do Amanhecer (Direção: Thiago Luciano. Brasil, 2016)

Numa das cenas mais abomináveis do ano, o diretor Thiago Luciano decide focar apenas as narinas do dono de uma empresa de gelo pouco antes dele atacar sua funcionária, sedento por sexo, como um predador. Pouco depois, o mesmo personagem se tranca numa geladeira para se matar e fazer com que esqueçamos do que havia feito antes – ou, pior, compreendamos.

Luciano tenta uma abordagem socialmente parecida com curtas-metragens brasileiros eficientes, tais como Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho, e O Tempo Que Leva, de Cíntia Domit Bittar, porém confundindo a depressão com ausência de sentimentos – algo extremamente comum em filmes do gênero, diga-se de passagem. Assim, o protagonista presenteando sua esposa com uma pedra, a fim de que ela dê um nome e cuide dela, torna-se ainda mais hilário quando até mesmo o diretor esquece dela ao decorrer da narrativa.

O mais próximo da estagnação e da denúncia que Fica Mais Escuro Antes do Amanhecer acaba oferecendo, ao fim, é sua vulnerabilidade estrutural.

(1 estrela em 5)

12. El Olivo (Direção: Icíar Bollaín. Espanha, 2016)

Se El Olivo sugere ser um filme sobre rotinas, em seu primeiro ato, é forte o quanto a obra de Bollaín ganha em profundidade nos olhos de uma jovem de 20 anos, que trabalha em uma granja de frangos familiar e cuida do avô, que parou de falar há vários anos, após os filhos venderem uma antiga oliveira herança de família.

Alma é uma personagem sensível, calorosa e rebelde, ao mesmo tempo. Mas sem nunca esquecer o que lhe fez ser assim: sua paixão pela natureza, ensinada pelo avô. O retrato dessa química é sempre nostálgico e belo, nas lentes de Icíar Bollain, que destaca seus flashbacks como se eles fossem extremamente necessários para lembrar Alma de seu passado – dentro de seu relacionamento familiar agarrado em memórias. Observe, por exemplo, o primeiro encontro entre ela e o avô, no filme, no meio de árvores sem vida, com suas raízes escancaradas: um simbolismo belo.

Da mesma forma, o constante tratamento de construtoras e empresas como monstros nunca soa infantil, mostrando um tom ambientalista interessante – não só personagens plantando para o futuro no clímax final, como também princípios de manifestações ao redor da oliveira, tornam-se cenas inesquecíveis.

E ainda que seja um filme cômico (“Você não pode ir, é o aniversário de seu casamento! Mas ele irá se divorciar!”), é no drama e no relacionamento entre avô e neta que El Olivo nos encanta. Em duas cenas similares, no alto de uma oliveira, o choro de Alma chega até nós como divisores funcionais – no final, sem o avô para consolá-la, ela encontra em seus familiares o que sempre buscou: um mundo que todos possam confraternizar a mesma coisa.

(5 estrelas em 5)

13. Aloys (Direção: Tobias Nolle. Suíça/França, 2016)

Até os minutos finais, Aloys não se define como o que ele realmente é: um espelho fascinante sobre nossa espetacularização acerca de relacionamentos platônicos e nossas idealizações. Por que viver algo, se podemos imaginá-lo de nossa própria forma? Aproveitar as nossas próprias vírgulas ou darmos nossas próprias exclamações, sem interrogações ou algo que possa nos afugentar?

O personagem-título nasce quase como alguém saído de um filme de Roy Andersson, em seu misto de tédio, agonia e frustração. Sente-se enjaulado em sua realidade. E é só no espectro de uma fantasia, na pele de uma vizinha tão confusa e insana quanto ele, que Aloys se encontra. A cena em que ambos simulam um show ao redor do piano de seu pai é a cena mais significativa da vida do detetive.

Como resultado, o homem apagado e repetitivo, dá vida a um homem que passa a aceitar sua própria condição. Assim, quando ele decide se abrirá ou não a porta para a mulher que mudou a sua vida, ele responde bem mais do que isso.

(4 estrelas em 5)

14. O Último Trago (Direção: Pedro Diógenes, Luiz Pretti, Ricardo Pretti. Brasil, 2016)

É comum notar a ânsia pela imagem alternativa, a fuga do burocrático, que os diretores brasileiros tentam buscar cada vez mais em suas narrativas estruturais. A ausência de palavras, o apego pelo silêncio, a solidão extrema são peças rotineiras nesses tabuleiros. Mas isso vem com um custo.

O Último Trago não é uma obra controversa ou difícil, ela é imatura, sem critério e prejudicada pela visão de três diretores diferentes, já que num momento assistimos a um drama noturno, noutro um terror cômico. E se isso nos leva a closes sem propósito ou uma trama indígena caótica, em que até manifestações sobrenaturais dão às caras, o roteiro ainda se esforça para ser o mais piegas possível, com frases tais quais “o mar está gozando” ou “o amor é uma desgraça”, como se significassem algo profundo.

Estéril e problemático, O Último Trago é uma viagem introspectiva para seus diretores, que estão muito mais preocupados em fazer filmes pessoais do que com algum significado universal.

(1 estrela em 5)

15. La Ciénaga – Entre el Mar y la Tierra (Direção: Carlos Del Castillo. Colômbia, 2016)

Vencedor de três prêmios em Sundance, La Ciénaga conta a história de um rapaz incapacitado que vive em um pântano, ao lado do mar do Caribe, aos cuidados de sua mãe, Rosa. Sua rotina é preenchida pela paixão que nutre pela sua vizinha Giselle, ao mesmo tempo que possui um sonho de entrar no mar, algo que não é permitido pelos seus aparelhos respiratórios.

O filme de Castillo, como é de se esperar, não foge de um melodrama clássico e pesado. A química entre mãe e filho, a dor e, claro, a esperança de momentos pontuais jogam La Ciénaga em caminhos conhecidos. Talvez, o maior problema seja seu exagero em criar situações emocionais e não conseguir entregá-las: um grande exemplo é quando um rato passeia pelo corpo de Alberto, sem que ele possa fazer nada, e pouco nos sentimos tenso pelo rapaz. Já que a pena é mais importante, na visão do diretor.

Deste modo, La Ciénaga carece da intensidade que gostaria de ter e pouco oferece.

(2 estrelas em 5)

16. A Repartição do Tempo (Direção: Santiago Dellape. Brasil, 2016)

Quando um carro do governo chega numa repartição pública para averiguar a produção dos funcionários da REPI (o registro de patentes e invenções), um plano detalhe revela a placa do carro da senadora: 171. Aproveitando seu tom caricatural desde que observamos as brincadeiras com o funcionalismo público, a terceirização e o chefe que fala em meritocracia sendo filho de uma mulher de alto cargo, Dellape expõe a natureza ridícula de sua narrativa com um dom invejável.

Afinal, é na surrealidade de A Repartição do Tempo que está a diversão, nunca em sua seriedade. É o que faz o drama de Zé, Shirley, Jonas e outros funcionários ser tão tragicômico. Claro que há uma mensagem pontual sobre economia e sociedade, mas mesmo quando existe é na comédia que Dellape busca sua qualidade (“eu te coloco numa repartição fantasma e tu me vira manchete?”).

Ancorando-se nesse clima despretensioso, o diretor entrega um dos melhores filmes nacionais de 2016.

(4 estrelas em 5)

17. A Dragon Arrives (Direção: Mani Haghighi. Irã, 2016)

O iraniano A Dragon Arrives tem como sua principal engrenagem o mundo de superstições iraniano e nossa precária sabedoria sobre a morte e suas ramificações. Criando uma alegoria sobre a existencialidade, Mani Haghighi intercala três momentos distintos na sua narrativa: a investigação de Babak, um documentário sobre os acontecimentos e um interrogatório.

Esse amontoado de perspectiva, claro, fragiliza a estrutura, ainda que não completamente. Porque há na história de Babak uma textura coesa e que versa perfeitamente com os enquadramentos de Haghighi: numa das melhores cenas do longa-metragem, por exemplo, o espectador vai se aproximando aos poucos de uma leitura dentro da cabana de um morto, ao lado do cemitério, numa afronta às superstições daquele povo.

Entretanto, é visível que o diretor parece não confiar plenamente em sua história, deixando com que a cada retorno ao tom documental, o seu universo fique em segundo plano, limitando a empatia a alguns segundos.

(3 estrelas em 5)

18. 24 Semanas (Direção: Anne Zohra Berrached. Alemanha, 2016)

Astrid descobriu que sua gestação será mais complicada do que imaginava: o seu filho foi diagnosticado com síndrome de down – cabe a ela e ao marido, Marcus, em consequência, a decisão de ter o filho ou não, já que, em casos do tipo, a justiça alemã permite que abortos tardios sejam realizados.

E é sempre questionado os acréscimos da família de Astrid em discussões que não cabem a eles, que o roteiro de Berrached e Carl Gerber encontra uma lucidez admirável para tratar de algo tão pesado, pois, ao mesmo tempo em que aponta o caráter questionável e o preconceito de alguns parantes (“O que tem de bom?”), ele suscita um debate, ainda que deixa claro que a decisão final sempre será de Astrid. Todos são coadjuvantes, nisto. E mesmo nas discussões com o marido, a personagem mostra sua luta interna diante do nascimento da criança sem precisar recorrer a palavras: um exemplo é quando ela coloca sua mão na parede, durante uma briga, como se estivesse acuada naquele momento.

Berrached também usa o choque para despertar reações: de uma visita a uma instituição de down para uma balada ou o crescimento da gestação apenas para o impacto mais tarde, quando descobrimos junto com Astrid que Down não é o único desafio. Nessa constante fé e autojulgamento, 24 Semanas é um bom exemplar sobre o fato de nem sempre estarmos seguros de nossas escolhas, pois há algo maior do que isso: somos humanos e podemos errar. Quem vai saber!?

(4 estrelas em 5)

19. Beduíno (Direção: Júlio Bressane. Brasil, 2016)

Captando a imagem como um voyeur de sua própria personalidade, se é que isso seja possível, Bressane abre as portas para a metalinguagem de seu novo filme ao já nos indicar um buraco de fechadura como o centro de nossas intenções e do quadro, na introdução: estamos espiando uma realidade que não é a nossa. 

Nem a deles, tampouco. Já que a história de Beduíno, como se existisse, é através de encenações de dois dramaturgos que atuam etapas diferentes da vida, numa espécie contínua de quadros – pinturas belíssimas, aliás, se nos concentrarmos na mise-en-scène.

Toda a construção das imagens de Bressane tem em vista uma moldura, um quadro, uma arte, um posicionamento correto. Num primeiro momento, os personagens de Alessandra Negrini e Fernando Eiras caminham pelas ruas sem destino, sem se olhar, eles só vão se notar quando um deles (ela, no caso) parar e chamar a atenção. Bressane é um homem de sensações, closes, apega-se ao que está fora do quadro tanto quanto o que está dentro. Além disso, ele brinca com seu espetáculo inventivo, o que ele gosta de chamar de inatual: uma das cenas mais impactantes talvez seja a de Negrini cercada por cordas na cama, enquanto ouvimos o barulho provocador delas esticando.

Noutra cena, o diretor evidencia o encanto da personagem diante das sombras, enquanto observamos atrás dela uma figura se aproximando. No velório, outra cena digníssima, a poesia serve para amparar a imagem. Não é uma novidade que ainda o fio de uma história é necessária para entrarmos com mais substância nas estruturas que Bressane cria. Mas, aqui, a ausência funciona.


(4 estrelas em 5)

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