22 de outubro de 2016

Mostra de São Paulo 2016– Dias 1 e 2 – 20 e 21 de outubro


Os dois primeiros dias da 40ª Mostra de Cinema de SP foram marcados por filmes que tratam de pessoas solitárias que não se encaixam na sociedade. Estão em busca do autoconhecimento. Isso é exatamente o oposto do que mais se destacou no festival em 2014, quando minha fiz minha primeira cobertura, onde o econômico-social-político importava muito mais do que individualidades. Foram dez filmes nesses primeiros dois dias, os quais seguem analisados:

1. Sami Blood (Direção: Amanda Kernell. Suécia, 2016)

Desde o primeiro frame do filme de Amanda Kernell, a solidão de uma mulher que não se sente pertencente ao mundo que ela precisa adentrar novamente é escancarada. Está no silêncio de seu semblante, além da evidência de seu perfil nos closes da diretora, essa faceta triste e solitária. Assim, não precisamos de muito para compreendermos o grande flashback do filme que nos levará a conhecer a verdadeira história de Elle Marja e como ela se tornou Christina e se afastou definitivamente de sua família, em busca de uma identidade própria.

São mundos completamente díspares, afinal. Kernell pretende denunciar o preconceito social de uma forma firme. “Sou uma criança pobre, mas feliz”, cantam os jovens lapões, como se fossem inferiores. O próprio rio perto da escola de Marja aponta para como o banal pode representar uma grande liberdade. Tanto que a protagonista se sente livre, finalmente, ao brincar com sua irmã no rio, mostrando pra ela uma vida diferente, onde você pode ser capaz de voar.

Não que a obra não tenha sua instabilidade, pois possui, principalmente na forma como distribui o tempo de compreensão de Marja na sociedade e o esquecimento da família atual de Christina ao bel prazer, mas são cenas como a do abuso que Marja sofre pelo governo, que a estuda como se ela fosse um animal, que torna Sami Blood um filme tão importante.

(4 estrelas em 5)

2. IRA (Direção: Jota Aronak. Espanha, 2015)

Não é de hoje que o debate sobre a moral da câmera é algo utilizado para analisar o cinema. No filme espanhol, esse é exatamente o tom que a narrativa encaminha: se alguém confessa que matará alguém na frente de você, enquanto você está gravando, você usaria isso em seu favor ou denunciaria para a polícia? A resposta parece óbvia, quando tratamos de diretores de cinema, mas como o próprio The Jinx lançado ano passado permitia que nos indagássemos acerca de algumas decisões importantes de cineastas, em como conduzir investigações que não lhe dizem respeito, IRA tenta fazer o mesmo.

Aqui, Jota Aronak entra na ficção para tentar trabalhar essa resposta, partindo de uma abordagem documental confusa e que flerta com as montagens policiais de Paul Greengrass. O caráter duvidoso de seu filme, por outro lado, dá as caras quando começa a compactuar moralmente com sua mensagem absurda: já que a justiça não funciona, ela não precisa existir e todos nós deveríamos responder a vingança de forma particular.

Neste perigosíssimo ensaio, IRA se torna uma obra cínica e raivosa sobre justiça com as próprias mãos, com um tom de cinismo ainda mais cruel – já que o diretor sugere pontualmente uma indecisão por parte do protagonista, a qual nunca existe e só serve para comprarmos a ideia de um assassinato.

(1 estrela em 5)

3. O Plano de Maggie (Direção: Rebecca Miller. EUA, 2015)

Em seu flerte óbvio com a cinegrafia de Woody Allen, a diretora americana Rebecca Miller embarca na vida de Maggie, uma mulher neurótica acerca de sua vida pessoal e que enxerga num professor de antropologia uma oportunidade para o amor. A trama parece simples e, caso condensada numa ótica romântica, uma obra convencional; porém, Miller nunca é resignada ao que se espera de sua trama: o que é seu ponto fraco e seu ponto forte.

Pois, por mais que não se observe um filme burocrático, já que as vidas com personalidade dos personagens de Julianne Moore, Ethan Hawke e Greta Gerwig nunca sugerem isso, esse apego à atmosfera (quase jazzista) de Woody Allen faz com que de alguma forma saibamos o que esperar das decisões pouco populares daquelas pessoas. A montagem de Sabine Hoffman, por sua vez, é ainda pior ao tentar administrar os eventos da vida dos casais que os levam até as suas decisões, como a falta de paixão de Maggie por John: um “eu te amo” como elipse chega a ser trágico. Esses risos involuntários ainda aparecem na cena em que Georgette e John estão presos na neve do Canadá e alguém grita que o aeroporto reabriu, assim que a luz retorna.

A falta de timing de O Plano de Maggie acaba não sendo, ainda, o pior dos problemas, já que sua tentativa de fechar a história da protagonista parece ainda mais forçada – ao vermos de longe, uma possibilidade nova, na pele de alguém que nunca pareceu realmente estar ali. Uma pena.

(2 estrelas em 5)

4. O Apartamento (Direção: Asghar Farhadi. Irã, 2016)

Em determinado instante de O Apartamento, novo filme de Farhadi, observamos um idoso aparentemente simples e frágil andando até o quarto de Emad para receber um “castigo” pelo que havia feito com Rana, mulher do iraniano. Durante a tensão que exala da cena, é difícil o espectador compactuar com qualquer um dos lados, já que ambos se evidenciam extremamente frágeis e autojulgados em suas ações.

Esse é o segredo do filme do brilhante Asghar Farhadi: a condução da perspectiva, do nosso olhar frente ao inevitável. O cineasta sabe como direcionar a nossa atenção em coisas simples e em plano intimistas: um exemplo é um dos alunos de Emad parado na porta, sendo analisado por nós, enquanto fala de Rana. Perceba como a câmera muda a perspectiva para o professor, como se depois do que o rapaz havia falado, a sua importância não fosse mais necessária. Da mesma forma, Farhadi continua eficiente em mostrar rachaduras em uma mesma ambientação – enquanto o “palco” pode parecer uma metáfora lógica para nossas vidas, ou as daquele casal, os enquadramentos que Emad e Rana aparecem separados, após o incidente, sempre soam impactantes, como se tudo tivesse mudado.

E mudou. A inserção de uma criança na rotina do casal no segundo ato até traz leveza e uma aproximação entre Emad e Rana novamente, mas não o bastante. As cicatrizes de um evento já se tornaram maiores. O resultado se torna o esperado.

(5 estrelas em 5)

5. Desconhecida (Direção: Joshua Marston. EUA, 2016)

Qual nossa identidade perante a sociedade? O que ela espera de nós? Podemos ser qualquer um ou devemos sempre ser nós mesmos? E quem somos, nesta ótica? O diretor Josha Marston caminha exatamente neste sentido, no fraquíssimo Desconhecida: se fôssemos todos quadros brancos que pudessem ser preenchidos conforme nossa vontade, quem seríamos?

O problema maior da obra de Marston é sua superficialidade. Seu desconforto em trabalhar com múltiplas personalidades faz com que foque em apenas uma: o relacionamento de uma pessoa que abdicou de ser ela mesma e um antigo amor de seu passado. São ecos do passado, sim, que importam para o americano. Todavia, sem conseguir ir adiante no tema principal, Marston desaproveita seus atores e o que eles podem oferecer para seus papeis.

Assim, o som de sapos cantando se torna o máximo que o cineasta consegue oferecer em sua história entediada e que nunca faz jus à vida de uma mulher que foge de si mesmo.

(2 estrelas em 5)

6. A Atração (Direção: Agnieska Smoczynska. Polônia, 2015)

Impassibilidade é um sentimento que dificilmente o espectador sentirá ao assistir o musical polonês A Atração, cuja linha narrativa parece uma cruza bizarra entre Splash, A Experiência e… Cabaret. Na história de Smoczynska, duas irmãs sereias se aventuraram pela cidade de Varsóvia, onde começam a trabalhar numa casa noturna. Tudo muda quando a mais nova se apaixona por um jovem baixista.

Muito mais profundo do que parece, A Atração consegue unir em seu favor seus números musicais com a noção de realidade daquele universo nonsense que a trama se passa. Se uma canção desperta as duas jovens sereias famintas por sexo e carne humana, a sedução através do encantamento é algo que a diretora está disposta a discorrer. Na casa noturna, todos dançam, todos se esbanjam, todos ficam a espera de impressionar alguém ou algo. Ou ser impressionado. Tudo clama por algo novo, por algo que nos entretenha até o amanhecer, por algo que nos seduza, algo que faça valer a pena o autossacrifício.

Não à toa, as sereias se chamam Prata e Dourada, como se fossem pequenos diamantes para o dono da boate. O encantamento pelas duas não se restringe ao público, elas também se sentem realizadas por serem a atração principal – uma das cenas mais importantes do primeiro ato é exatamente quando ambas entram numa loja para se vestir para o show.

Smoczynska também acerta brilhantemente em construir seus números musicais como se fossem frutos de pensamentos dos personagens: assim, fazendo com que sempre desconfiamos se é um sonho ou se aquilo realmente está acontecendo. E se alguns são pouco eficientes, como aquele da sereia mais nova com o baixista no palco, que serve apenas para mostrar uma cumplicidade entre duas pessoas de mundos diferentes; outros, rendem muito, tal qual a cena em que a família disfuncional se dopa e canta sobre o veneno percorrendo suas veias.

A cineasta ainda ensaia uma abordagem bastante feminista, quando se propõe a mostrar a sereia disposta a se sacrificar pelo amado, enquanto ele se apaixona por outra mulher por ser mais confortável para ele. Assim, a monstruosidade da cena final (por parte de alguém que sempre amou a brutalidade, diga-se) se torna mais retumbante. Porque, embora saibamos que havia muito mais a ser oferecido por aqueles personagens, sabemos que é a hora de deixá-los.

(4 estrelas em 5)

7. In The Blood (Direção: Rasmus Heisterberg. Dinamarca, 2016)

À primeira vista, é claro que o dinamarquês In The Blood flerta com o universo beat em suas noites regadas a álcool, sexo e despretensiosidade. No universo dos amigos Simon, Knud, Soren e Esben, a juventude não é só uma etapa, é a única. Ao menos, eles pensam assim ao invadir shows, curtir festas e agir em rebeldia.

In The Blood, assim como outros filmes similares, torna-se empático com seu personagem mais derrotado e depressivo: Simon. O único que pensa estar sozinho no mundo, longe de todos, infeliz e ensaiando uma autodestruição. Todavia, Heisterberg não consegue demonstrar realmente um caminho para sua história ou o que ele pode acrescentar sobre esse período.

No final das contas, Simon é alguém tão medíocre como se autojulga, ainda que o diretor se esforce para dar vida para ele. Desta forma, o verão em Copenhague acaba não sendo interminável só para o protagonista, mas para nós.

(2 estrelas em 5)

8. Radio Dreams (Direção: Babak Jalali. Irã/EUA, 2016)

Há algo de A Última Noite, de Robert Altman, no filme de Jalali que por si só já desperta muita curiosidade. Aqui, o que separa a pequena equipe da radio PARS, uma estação exclusivamente persa que atua em São Francisco, de um dia normal, é a vinda da banda Metallica para uma jam com músicos afegãos. A proposta é unir dois mundos através do rock.

Se isso poderia servir como fruto de uma tensão para as pessoas que trabalham na estação, Jalali pouco pensa nisso: para ele, a comédia de situação é mais importante. Portanto, closes em personagens entediados, unindo o excêntrico com o cínico, torna-se uma constante. Não que isso não funcione completamente, pois funciona – repetindo a mesma situação várias vezes, por exemplo, o diretor consegue produzir um impacto maior quando o personagem de Mohsen Namjoo perde a cabeça durante um comercial.

Aliás, é o protagonista que tem os grandes momentos de Radio Dreams, que são poucos. Numa das minhas cenas favoritas, seu descaso com a rotina da rádio é tão grande, que ao ouvir uma Miss Iraniana/Americana falar sobre seu dom de escrever poemas, ele se torna praticamente um irmão distante de Jep, de A Grande Beleza.

Uma pena que o universo enfadonho não nos permita nos aproximar o bastante. De ninguém.

(2 estrelas em 5)

9. Mimosas (Direção: Oliver Laxe. Marrocos/Espanha/França/Catar, 2016)

É irônico que Mimosas seja exatamente como a peregrinação que representa: ainda que contenha imagens belíssimas, tornando-se uma aventura inesquecível, a filosofia pífia que rodeia aqueles personagens e a falta de comunicação entre o trio que pretende levar o corpo de um xeque para onde ele quer ser enterrado faz o filme se autossabotar em estrutura.

Porque não há mais nada na história de Oliver Laxe que nos faça compreender motivações, interesses, possibilidades e morais daquelas pessoas. Não há tensão alguma durante a viagem e suas metáforas nunca funcionam – como suas insistentes cenas com táxis no deserto. E se a fotografia de Mauro Herce enche os olhos, o mesmo não pode se dizer dos atores, que não conseguem nem evidenciar seu cansaço.

No fim, a frase que se destaca no primeiro ato acaba fazendo falta, quando alguém diz: “Só deus determina a quem você precisa se curvar. O diabo não se curva a ninguém”. Quem sabe, o ceticismo não fosse importante, afinal?!

(2 estrelas em 5)

10. The Handmaiden (Direção: Park Chan-Wook. Coréia do Sul, 2016)

Ao entrar numa casa desconhecida, Sooke começa a sentir que está sendo vigiada pelos quadros da casa de Hideko, uma herdeira que leva uma vida pacata junto ao seu tio tirano, que sobrevive às custas de histórias eróticas lidas para ricaços. Assustada com a atmosfera do casarão, Sooke desperta situações cômicas ao entrar no quarto de Hideko pela primeira vez e ouvir uma história sobre o fantasma de sua tia – pouco antes da jovem sair correndo por trás dela com um lençol branco para pregar uma peça. Ali, o que se torna raro no filme, estamos dentro de uma visão de terceira pessoa, do lado de fora, olhando para as duas pela janela, sem consciência particular. É apenas uma introdução.

Esse é o segredo do genial Park Chan-Wook ao nos levar às perspectivas de Hideko e Sooke, separadamente, a partir do segundo ato. Ao não conhecermos propriamente suas intenções, a surpresa que seus pontos de virada causam são enormes. O sul coreano, aliás, pouco tenta falar sobre a invasão japonesa na Coreia do Sul (a única cena talvez mais atrevida, nesta ótica, seja crianças marchando logo atrás de soldados na chuva), pois ele sabe que seus personagens se encarregarão de expor a hipocrisia daquele cenário de forma sutil.

A paixão pelo brutal, pelo masoquismo, dos grandes ricos que se excitam com a descrição de mulheres subjugando homens sublinham esse quadro. Park trata a masculinidade e sua tentativa de ser viril como algo comicamente desprezível – não só dos idosos escondendo seus membros com a mão ao ouvir uma das histórias contadas por Hideko, como também o tio batendo na tia e na sobrinha enquanto seu pênis fica ereto (num plano detalhe eficiente) ou em como o Conde só se preocupa em manter seu órgão antes de seu destino inevitável.

Deste modo, o que antes era chibata, torna-se prazer e algo que não desperta mais memória para Hideko, na cena final, em que as duas dividem um instrumento de dor para atingirem o orgasmo. É, ao mesmo tempo, lindíssima a forma como o cineasta sublinha o encantamento uma pela outra: a cena mais óbvia é a da banheira, onde cada uma de suas perspectivas são mostradas, numa forma brilhante de simular uma tensão – o olhar, o lábio úmido… 

Assim como em Carol, Park se preocupa com a sensação de cada uma e com a leveza da paixão em contraste com o descontrole do tesão. Um paradoxo lindo para se filmar. E que o cineasta faz como poucos. Uma obra-prima. 

(5 estrelas em 5)

Nenhum comentário: