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Idem,
Irlanda, 2016. Direção: John Carney. Roteiro: John Carney. Elenco: Ferdia
Walsh-Peelo, Jack Reynor, Lucy Boynton, Mark McKenna, Aidan Gillen, Maria Doyle
Kennedy, Kelly Thornton, Ben Carolan, Percy Chamburuka. Duração: 2h14min.
"Seus
olhos são como nuvens passando pela lua".
Não
escolhemos nossas musas. Todo o artista, independente do que representa ou do
seu ponto de partida, cinema, literatura, pintura, música, possui algo que lhe
instiga, que o faz caminhar pela sua própria imaginação e que gera sua formação. Pode ser a corrente elétrica que aproxima seus corpos, um toque,
a maneira como ela segura um cigarro ou o seu olhar; em determinado instante,
pouco passa a importar como tudo começou, mas o que é, o seu presente, o seu
auge criativo. Não apenas seu corpo, mas sua mente quer mergulhar no que lhe
encanta, desnudar todas as nuances possíveis. Os contextos servem só como
coadjuvantes para o papel principal: o seu futuro.
Cosmo,
personagem interpretado pelo jovem Ferdia Walsh-Peelo, é um desses jovens que
sofre seu primeiro contato com as inúmeras possibilidades de uma imaginação
infantil, frutos de seu primeiro amor: a música. Raphina, de Lucy Boynton, é o
catalisador, o intermediário, para os desejos de Cosmo, mas não é a
protagonista do seu mundo, do enfrentamento angustiante de um lar quebrado por
uma separação, de sua rebeldia escolar – esses fundamentos, sim, frutos de uma
Dublin que respira rock 'n' roll e usa esse contexto para ofuscar dificuldades.
Nosso primeiro contato com Connor é na sua cama, com o violão no seu colo, como
seu único amigo, tentando encontrar na música uma fuga de sua realidade,
produzindo acordes raivosos e melancólicos para expor sua própria dor.
Sob esta perspectiva, John Carney já padronizou suas narrativas: a aproximação familiar
através da música, o mundo imaginativo da produção, o escapismo da realidade
econômica e o amor de dois personagens como impulsionador artístico. Em Mesmo
Se Nada Der Certo, as letras serviam como indicações sobre quem eram
aquelas pessoas vivendo naquela realidade, aproximando-nos de famílias
problemáticas, em que a música servia como objeto de reconexão entre pai e
filha. Na primeira obra-prima, Apenas uma Vez, o cineasta espelhava
as angústias românticas de seus personagens partindo de um encontro entre duas
pessoas solitárias nas ruas de Dublin, onde o próprio longa-metragem já
garantia que poderia se tratar de qualquer garoto e qualquer garota tentando
viver artisticamente na cidade. A imigrante interpretada por Markéta Irglová
precisava reexistir, enquanto tentava lidar com a ausência do marido e cuidar
de sua filha.
No
seu novo filme, Sing Street, é tempo de musas e do reconhecimento da própria
identidade, neste caminho, ainda que a família disfuncional esteja garantida.
Aqui, o irmão de Connor, interpretado soberbamente por Jack Reynor, que merecia
no mínimo indicações às premiações mais importantes da indústria, visualiza na
figura do mais novo uma chance de ser um mentor, um guia pela vida e pela
música, algo que ele teve que descobrir sozinho. É comovente, portanto, quando
olhamos seu misto de prazer e nostalgia, além de sua vibração, ao observar o
irmão indo adiante, no clímax, tendo a coragem que Brendan nunca pode ter.
A
química de Brendan e Connor, aliás, cria a linha da narrativa de Carney.
Observe como Connor respira cada frase pronunciada por Brendan, quase como se
agisse como uma sombra e precisasse repassar aquelas palavras para outras
pessoas. Numa época dominada pela MTV e seus videoclipes mercantis, Brendan
indaga qual tirania sobreviveria ao rock 'n' roll!? É o bastante para incentivar
um Connor em fase de amadurecimento a tentar se encontrar neste ambiente (seus
figurinos a cada nova dica musical do irmão evidenciam precisamente essa busca
interna). O mesmo quando Brendan afirma, numa cena belíssima, ao som de uma
música de Daryl Hall e John Oates: "a vida é assim, dirija-a como se você
tivesse a roubado". Tudo para esse verso ser exatamente o refrão da canção
mais imaginativa de Cosmo, onde observamos um clipe passar na sua cabeça,
enquanto canta para meia-dúzia de pessoas. Ali, todos fazem parte de seu show:
Raphina, seus pais e Brendan.
Afinal,
ambos são ecos distintos produzidos no mesmo ambiente familiar, ainda que se
completem. "Eu sou um futurista", raciocina Connor. Quando observamos
o seu olhar cheio de curiosidade, focando no horizonte a promessa de uma
Londres cheia de possibilidades, talvez entendamos o que ele quer dizer.
Musas e seus artistas
É
impossível deixar de notar a primeira conversa entre Connor e Raphina como o
centralizador das ações futuras de seus personagens. Não é o espectador que a
vê, em primeiro plano, mas Connor. Ele a analisa primeiro, na escada, desfocada
para nós, quase uma posse para ele. Nós só somos permitidos a enxergá-la,
quando ele vai até ela. Ali, naquele momento, podemos fazer parte dessa nova jornada.
Igual, é ela que o instiga a cantar: veja como a sua timidez é descartada
quando ela pede para ele cantar uma música do A-ha: "eu sou apenas uma,
você irá cantar um dia para milhares". Ao mesmo tempo, Eamon (Mark
McKenna, excelente) serve como o intermediário entre o artista e sua musa, com
a finalidade compreendermos melhor o processo que Cosmo está passando e o
quanto aquilo lhe afeta. A música pode trazer tanto o amor platônico quanto o
amor de uma amizade, nas lentes de John Carney.
"Quando
você não conhece alguém, ele parece ser interessante, podendo ser tudo o que
você quiser que ele seja. Mas quando o conhece, você percebe que ele também tem
limites", diagnostica um cada vez mais maduro Cosmo, que encontra no seu
relacionamento com Raphina uma evolução pessoal. Assim, fica difícil não se
incluir na melancolia gritante de Up, enquanto ele olha para o nada, no píer,
tentando avistar uma escondida Londres e tocando acordes lentos que refletem
seus sentimentos naquela etapa.
A mensagem é o triunfo da música e da imaginação
sobre nossos problemas. Não à toa, a aparição de Raphina, sua musa, entrando ao
som de sua música de rebeldia, a que lhe transforma finalmente numa pessoa
resolvida, flerta com a cena em que ele a imaginava entrando ao som de Drive It
Like You Stole It. Dois momentos distintos, mas que retratam a nossa natureza
obsessiva por um único momento de felicidade, que nos faz crer que não somos
mais vazios. Porque temos uma razão para viver.
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