31 de outubro de 2018

Halloween (2018)

Idem, EUA, 2018. Direção: David Gordon Green. Roteiro: David Gordon Green, Danny McBride e Jeff Fradley, baseado nos personagens de John Carpenter e Debra Hill. Elenco: Jamie Lee Curtis, Judy Greer, Andi Matichak, Haluk Bilginer, Will Patton, James Jude Courtney e Nick Castle. Duração: 1h46min.

“Para os padrões atuais, um cara com uma faca matando meia dúzia de pessoas não choca mais.”

       Certos medos nunca morrem. Podemos enclausurar o terror, mantê-lo encolhido no centro de um tabuleiro de um jogo de damas, cujo objetivo é imobilizar a peça inimiga, mas o medo permanecerá lá, mesmo inaudível, esperando o momento certo para ressurgir. Podem-se passar anos, a memória de um trauma jamais apagará. Priorizar-se-á outras coisas, ocultando uma determinada informação por um período de tempo, porém ela jamais morrerá. É o que nos evidencia desde o início o novo Halloween, de David Gordon Green, que está exatamente preocupado em falar sobre como podemos reagir ao episódio traumático. Ilustra-se, por exemplo, o início do longa-metragem entre relógios, tempo e retóricas sobre nossa confiança na mente e nossos sonhos para depois entrarmos no mundo das histórias, das lendas, agora informadas através de um jornalismo contemporâneo. Como entender a fisiologia do mal? No jogo que levou o Dr. Loomis a uma contestação simplista de que Michael Meyers era o estado bruto de tudo que é mal, Green se interessa pelo impacto que o mal gera no agressor e na vítima, priorizando, claro, a segunda. Assim, além de sinistra, a cena em que pacientes dentro de um manicômio começam a gritar ao redor de Michael, o único calado e no centro do quadro, denuncia a força de uma memória traumática e o quanto a máscara pode ser um objeto figurativo do sofrimento humano. 
       Quando Carpenter lançou há 40 anos sua maior obra-prima, Halloween, seu interesse era representar o terror de uma sociedade interiorana americana. O mal poderia vir de onde menos se esperava, o bicho-papão seria um medo adulto e criaria uma identidade duradoura para a cidade atingida. Afinal, certas feridas são demasiadamente adultas. Embora Green aponte as cicatrizes sociais criadas por Meyers pontualmente no longa-metragem, mais nos gracejos do filme (“Sou médico. Tranquem suas portas”), já que há, sim, a população se escondendo em suas casas, encarceradas por vontade própria, enquanto o assassino faz seu banquete; importa muito mais para seu realizador os monstros internos presentes no relacionamento entre mãe/filha/neta. Deste modo, é lindíssimo observar as mudanças de perspectiva que o diretor cria homenageando, ao mesmo tempo, seus personagens com o culto ao filme original. A primeira aparição de Meyers no gramado de uma escola no original, observe, muda para uma Laurie com uma missão, num enquadramento bem similar (ambas as vezes, enquanto um professor discorre sobre destino). No ambiente familiar, aliás, Laurie representa o monstro que não se fala, que permanece fora do ciclo familiar; é ela que toma o lugar de Meyers. 
       Há diferenças entre os monstros que fazem parte de nossa vida – internos, externos, sociais. A família de Laurie carrega gerações traumatizadas por um único monstro, enquanto a avó, que recebeu o maior impacto, passa a ser a referência da experiência emocional que desagrada. Ela lida de formas variadas, como mostra o grito angustiado no carro, o alcoolismo implícito em sua história, o abandono do laço com a filha, e tenta mudar sua narrativa como todos nós gostaríamos: ficando no controle dela. Se tivéssemos a chance de ser o comandante de nossa vida, de usar nosso conhecimento para mudar certas decisões, como faríamos? Se a memória de um trauma é muito mais forte e a avaliação dele é diária, podemos imaginar múltiplas opções. E quando alguém mantém um único encontro na lembrança por 40 anos? 
       Sob esta perspectiva, Green recria os cenários do original com uma lógica brilhante, tal qual Wes Craven havia abordado em Pânico 4. A mudança de agressor e agredido dentro de um certo local. Deste modo, Laurie passa a morar numa casa em que exerce autoridade plena, em ambientes que flertam com os mesmos de 40 anos atrás: o mesmo quarto, o mesmo guarda-roupas, a mesma situação, só que, agora, é ela que porta uma arma e procura seu monstro, é ela que alimenta vingança, é ela que está atrás de algo. A rima visual com Laurie sendo atingida e caindo da sacada, de onde Michael cai no primeiro filme, espelha muitíssimo bem essa sagacidade do roteiro. Laurie passou a ser o monstro que persegue o seu próprio. Em determinado momento, essa proposta é tão grande que a própria neta grita ao se deparar com a personalidade da avó diante de um campo de bonecos mortos. A família, novamente, é o tema central de Halloween. No presente, com três gerações distintas conhecendo Meyers, ligadas pelo sangue. 
      Mas como reconstituir essa história? O roteiro trabalha neste aspecto desde a primeira cena, como dito, quando o tempo e a informação é tratada de maneira vital para o retorno dos monstros em Haddonfield. Adiante, Green explora o passo a passo. Perceba a história começando a ser contada novamente no cemitério e Meyers surgindo ao fundo, atrás de uma árvore. Aos poucos, a lenda buscada pelos jornalistas começa a reviver, culminando na magnífica cena do posto, onde a sombra de Meyers é vista ao fundo, num jogo de foco excepcional (e que lembra muito Henry – Retrato de um Serial Killer), cuja presença do assassino só se mostra na sugestão da sombra dele e do som de uma ferramenta caindo no chão, após a morte de um mecânico; além de uma van que sinaliza exatamente a palavra: “ressurreição”. As rimas visuais com os primeiros filmes, como a recriação da cena no banheiro do posto, geram profundidade, assim, com os jornalistas dando literalmente a vida para a história ganhar contornos. 
       Nas perspectivas multilaterais da história, Meyers saindo pela porta da frente de uma casa com a bandeira dos EUA na fachada, analisando as pessoas vivendo entre travessuras e gostosuras na noite de Halloween, dialoga com os monstros que não falamos. Cenas impactantes, como quando o espectador estuda os movimentos de Meyers do vidro da sala até a vítima ser esfaqueada quando baixa a persiana, para ninguém perceber o que está acontecendo ali, ou o assassino no armário de uma casa, esperando para aparecer para quem abri-lo, são mais do que cinemáticas. Elas exprimem um valor narrativo invejável para um subgênero como o slasher.
       Um subgênero, veja só, popularizado há cerca de 40 anos e que se tornou, aos poucos, apenas uma memória cinematográfica distante. Sem o impacto das primeiras experiências e mortes. No novo Halloween, portanto, David Gordon Green não apenas dá voz e vida a um dos personagens mais icônicos da história do cinema de horror, mas também resgata uma fórmula esquecida. Provando que, tal como os monstros que assombraram Laurie Strode por 40 anos, certos medos não morrem. Lendas, memórias, não morrem. Elas ficam. Esperam voltar para a sociedade. Não importa o tempo que elas fiquem deixadas de lado, elas voltarão algum dia. Mesmo que as queimemos em uma gaiola, nós sabemos: o horror sobrevive.

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