Begin Again, EUA, 2013. Direção:
John Carney. Roteiro: John Carney. Elenco: Keira Knightley, Mark Ruffalo, Adam
Levine, Hailee Steinfeld, James Corden, Mos Def, Cee Lo Green, Catherine Keener.
Duração: 104 min.
Algumas
das perguntas primordiais que uma narrativa pode traçar são: o que trouxe os
personagens até aquele momento e como chegaram até lá; ou melhor, com quais
seqüelas e cicatrizes? O que cada um visualiza quando se depara com um momento
fora da curva e como percebe as coisas ao seu redor? No excepcional Inside Llewyn Davis, por exemplo, isto
era exatamente o cerne do longa-metragem: dentro da mente do protagonista,
necessitávamos compreender a fuga final de seus sonhos. A mesma melancolia que
guiava John Carney na obra-prima Apenas
uma Vez, onde o sacrifício dos personagens deixava a música como pano de
fundo e um desabafo. Mesmo Se Nada Der
Certo nasce como um acréscimo à lista, nesta perspectiva, ao interligar numa
só trama: sonhos, perdas, intimidade, a arte e a valorização dos sentimentos em
canções. É um filme em que as letras são indicações sobre quem são aquelas
pessoas vivendo naquela realidade.
E é mantendo-se fiel ao
seu maior êxito narrativo que Carney acerta em cheio ao deixar as canções como
pano de fundo, nunca o principal atrativo. Pois, criando uma obra íntima,
natural e crível, o cineasta valoriza as questões capitais levantadas pelo
longa-metragem a todo o momento, fazendo com que seja compreensível as
conseqüências de cada ação tomada a partir do segundo ato. Mantendo-nos
próximos dos personagens com sua câmera, o diretor consegue transmitir em uma
única seqüência tudo o que devemos saber sobre alguém - assim, analise o
primeiro contato com a vida de Dan: o uísque é nossa primeira referência. Num
jogo de foco eficiente, onde o protagonista só aparece ao fundo, notamos o seu
vício e desânimo de imediato, numa simplicidade deliciosa. Da mesma forma, logo
depois, o passeio que o diretor confere abordo do veículo de Dan nos revela a
natureza da tristeza - nostálgico e infeliz, carregando o uísque em um cantil,
ele está em busca de algo que o entusiasme, uma canção que lhe traga de volta,
mas nunca a encontra. A mesma nostalgia e apego ao passado que podem ser
visualizadas no próprio carro em que ele está e no seu prazer pelo velho
toca-fitas, bem como o relacionamento com sua filha (o olhar julgador para as
roupas e a convidando para um sorvete são bons exemplos).
E se Dan vive no passado,
Gretta é exatamente o seu oposto. Norteando-se pelo relacionamento fracassado
com seu ex-namorado, a personagem de Keira Knightley se orienta por sua
frustração momentânea. É lindíssimo, igualmente, perceber como as fases de um
pós-romance são encontradas marcadas no semblante de Gretta: a dedicação aos
instantes de felicidades vividos, a necessidade de entender o erro, se foi dela
ou se foi dele, os ruins aparecendo aos poucos, o preço da fama, as viagens e
as respostas inseridas nas canções. Tudo serve como um diagnóstico para nos
envolvermos nos sintomas dela e quais são as razões que a levaram a ser
(literalmente) a pessoa que ela canta em sua primeira música: no metrô,
sozinha, com uma mala, pensando se vai embora ou se fica. Um paralelo que se
torna ainda mais comovente, aliás, quando ela se vê debaixo de uma placa de
saída, no show do ex-namorado, sem saber se dá um passo para frente ou para
trás.
Afinal, ainda que suas
realidades sejam temporalmente divergentes, as impressões entre os dois
protagonistas se assemelham. E, como não poderia deixar de ser, a música os
torna próximos; íntimos. É ela que os une, a paixão por ela. Sob esta ótica, a
montagem de Andrew Marcus tem um papel fundamental em sintetizar o segundo em
que essas duas pessoas se encontram. O foco em Dan, na primeira vez que ouve
Gretta, por exemplo, é inesquecível ao expor numa orquestra imaginável a
visualização de um potencial - sob a mente de um produtor. Do mesmo modo, a
oferta imediata feita para ela sentada no sofá é quase cômica, por sabermos do
seu prévio desespero.
Ao mesmo tempo, nunca
soando forçada ou exagerada, a montagem estabelece cada minuto de maneira
concisa. Assim, o espectador sente que esta assistindo a duas pessoas se
apaixonarem em tempo real, lentamente e naturalmente. E uma das grandes cenas
que evidencia isso é o brilhante passeio de Dan e Gretta, onde um adaptador de
fones faz com que ambos andem por Nova York na calada da noite com suas
playlists pessoais. E é mágico quando avaliamos como a situação é feita para
metaforicamente os passados se cruzarem num presente aventureiro - a referência
à Casablanca é absolutamente perfeita, neste caso, com As time goes by. Ou For Once
in My Life numa balada. Duas músicas que refletem exatamente o espírito de
seus protagonistas enquanto são executadas.
A música, enfim, é o
que retrata a aproximação. Toda a narrativa de Carney está inserida nesse
contexto. Desde a crítica aos adolescentes monossilábicos modernos, a autenticidade
perdida, produtos midiáticos e o uso das músicas em filmes (num belo modelo de
metalinguagem) até chegar ao recado na secretária eletrônica de Dave: com o
celular servindo como microfone e a música como o desabafo, o recurso final.
Para o cineasta, as respostas estão em acordes e versos. Observe, assim sendo,
a aproximação final entre pai e filha, na música, com a junção do baixo e da
guitarra.
Claro que Dan
continuará carregando a aliança, embriagando-se com as lágrimas de algum revés,
mas ninguém poderá tirar de sua existência o instante em que ouviu algo que
mudou sua vida. Algo que foi responsável por reascender seu entusiasmo pela
simplicidade (garotos como back vocals, sutiã como abafador, fuga da polícia,
tocar no meio do lixo da cidade) e reorganizar sua vida com a filha (os dois
comendo sorvete juntos, a mudança no figurino, o passado que tanto amava
ressurgindo). Algo que é resumido numa jovem música, a qual o braço de Dan não
deseja mais soltar, no último momento juntos.
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