Noah, EUA, 2014. Direção: Darren Aronofsky. Roteiro: Darren
Aronofsky e Ari Handel. Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Ray Winstone,
Anthony Hopkins, Emma Watson, Logan Lerman, Douglas Booth. Duração: 138 min.
“Adão
conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: ‘Possuí um
homem com a ajuda do Senhor’. E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim. Abel
tornou-se pastor e Caim lavrador. Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da
terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu
rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua
oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou
extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido”.
[Genesis,
capítulo 4, versículos 1, 2, 3, 4 e 5]
À primeira vista, Noé
não é um filme comum de Darren Aronofsky. Querendo aproximar-se de cineastas
como Mel Gibson, William Wyler, Cecil B. DeMille e até mesmo Kubrick e
Scorsese, o americano aparenta ter dirigido um protótipo de épico feito para
estúdio, a fim de conquistar o público católico. Por outro lado, dono de uma
carreira que, apesar de parecer divergente, complementa-se, Noé nasce como um projeto muito mais
ambicioso do que poderia ser esperado, culminando numa resposta ferrenha à
adulação cristã, além de servir como gancho para explorar diferentes camadas:
familiar, social e pessoal.
Afinal, partindo do
ponto de que Noé é um personagem que se vê entre sua fé e sua devoção pela
família e a natureza, o personagem-título reside na linha tênue entre a loucura
e o seu sacrifício extremo – assim, não se distanciando de obras como O Lutador ou Cisne Negro, ambas do diretor. Claro que, a princípio, a lógica é
criar um paralelo com A Fonte da Vida,
o que até mesmo a trilha sonora do soberbo Clint Mansell não se reprime em
fazer: construindo acordes semelhantes aos de sua composição Death Is The Road to Awe.
Todavia, a obra de
Aronofsky se estende a muito mais que o âmbito do relacionamento familiar,
ainda que esteja intrínseco ao que estamos assistindo. A jornada de Noé é
sempre obscurecida pela questão milenar regida por nossa natureza: sou bom ou
sou mau? Sou igual àqueles que combato? E o personagem, diferente do que se
espera, não trilha o caminho da arrogância ou da autossuficiência; muito pelo
contrário, querendo provar para seu “mestre” que possui as qualidades
necessárias para cumprir a tarefa, sacrifica sua própria essência ao livrar-se
de outros seres humanos sem piedade. Como o ambientalista que é, Noé acredita
que a natureza é a única e possível evolução. Não haveria espaço para homens na
nova sociedade. Não à toa, refugia-se no único lugar que sabe não ter sofrido a
ação dos homens: as florestas, o verde. O próprio diálogo de Noé com seus
filhos aponta para outro simbolismo pessoal e pertinente na obra: “o vento leva
sementes, outras brotam. Elas têm um propósito”.
Aqui, aliás, precisa-se
começar a evidenciar o contraponto brilhante que Aronofsky cria ao retratar Noé
como o “favorito” do “Criador”. Deixando claro que a metáfora de Caim e Abel serviria
para o decorrer do longa-metragem como a principal meta, o diretor imprime com
facilidade os lados dos dois irmãos. Se a luta entre Caim e Abel, por exemplo, representa
o primeiro homicídio da humanidade, o princípio da tentação e da ganância, o
americano inicia da mesma forma a sua obra: ao provocar o espectador com
Tubal-cain assassinando o pai de Noé e estabelecendo a lógica.
Continuando o seu
caminho pelo antigo testamento, o diretor também não só brinca ao trazer pelugens
diferentes para um animal ferido que é encontrado pela família de Noé (Cisne Negro), mas também com o fato do
sacrifício do espécime aos céus (capítulo 4, versículo 4: Abel oferece o
primogênito de seu rebanho).
Não dá para deixar de
destacar, nesta perspectiva, o apreço que Abel, digo, Noé, possui por Sem, o
primogênito. Da mesma forma, para deixar a luta final entre Tubal-cain e o
protagonista ainda mais clara, como uma demonstração de uma segunda chance, um
recomeço, os opostos vividos pelos dois, apesar da mesma espécie (outro
símbolo), são sublinhados durante todo o percurso. Note, sob esta ótica, o
enquadramento de Aronofsky que confere o primeiro encontro entre os dois – de um
lado as árvores e frutas silvestres (Caim, ou melhor, Tubal-cain), doutro o
rebanho e a arca (Abel, ou melhor, Noé). A própria cena na barraca, quando o
personagem de Winstone cobra a adoração de Deus pelo outro, reflete este
espírito.
Como se não fosse o
bastante, o americano ainda é mais claro na forma como o atentado a Noé é
orquestrado, com este seguindo seu próprio parente para ser morto. Neste caso,
ao mesmo tempo, importantíssimo salientar a tragédia familiar em que os personagens
estão envolvidos: basta avaliar que a parte em que Tubal-cain entra na arca é a
que Cam cuidava, a mais frágil. Como se a arca fosse exatamente um símbolo para
aquele ambiente, que estava corrompido. Também vale indicar que o “antagonista”
apoia-se no machado de Cam para se levantar durante uma discussão com Noé e usa
exatamente aquele para entrar na arca (sem esquecer que, olha só, a combinação
dos dois nomes formam exatamente o nome de Caim). Cam, além do mais, é um dos
personagens mais interessantes do roteiro e sua busca pela aprovação do pai, já
que se sente reprimido desde pequeno, é exatamente a válvula que dá origem à
tragédia: observe que, mesmo que inconsciente, o personagem só vai para as
florestas quando ouve do pai: “estou pedindo para você ser homem” – algo que é
semioticamente belo.
Do mesmo modo, Noé possui
uma invejável profundidade para debater a sua própria natureza e a compaixão e
ódio intrínsecos à humanidade. Seu próprio duelo intimista é denunciado em sua
natureza ambientalista versus o rebanho para o sacrifício. Algo que é
diagnosticado em uma magnífica sequência envolvendo uma decisão que precisa ser
feita relacionando homens e animais: analise, neste ponto, que os absurdos sacrifícios
humanos vistos nas comunidades projetavam uma troca de duas meninas por um
animal, algo que o próprio Noé estaria disposto a fazer, mas lutou contra o que
pensava ser sua missão. Assim sendo, é louvável que Aronofsky exponha o cruel
deus do antigo testamento, ao retratar a mulher como moeda de troca
insignificante e onde o genocídio e o assassinato eram práticas vistas como indispensáveis.
E é claro que isso só
seria possível com um diretor que soubesse o que estava fazendo, como é o caso.
Cínico na forma como encara a adoração ou dons premonitórios (os alucinógenos
são impagáveis), Aronofsky é genial ao propor o conflito atemporal entre a
essência da vida: de tal modo, proporcionando a sequência do ano ao retratar a
história do criacionismo com as imagens da filosofia do Cosmos – a evolução do
macaco para Adão e Eva é indescritível. Além disso, prova sua excelência em
inúmeras cenas, destacando-se a corrida com a câmera subjetiva para o
território dos guardiões, o brilhante travelling
circular que inicia nas florestas, faz a volta em 360º quando notamos a arca pela
primeira vez e termina no novo mundo, além da sequência do voo das pombas. Igualmente,
o perfil de Noé é sempre bem enquadrado no andar imponente dentro da arca,
apenas um homem fora dela. Não se esquecendo de duas cenas intensas: uma delas,
o monólogo desesperado de Crowe, após um plano-sequência; outra, a aproximação
da primeira gota de chuva de cima para baixo, que vira uma lágrima, enquanto os
homens visualizam a chuva de baixo para cima.
Nunca deixando de lado
seus simbolismos, Aronofsky ainda experimenta passear pelas metáforas bíblicas:
desde o batismo plagiando palavras do velho testamento, o toque celestial que a
Capela Sistina retrata, o ouro puro visualizado nos arredores, a luz que faz
com que não percebamos a nudez no paraíso, as vestes de pele, os gigantes que
viviam na terra até a pomba que finalmente retorna trazendo uma folha verde de
oliveira. O próprio “teste” do personagem-título se assemelha ao de Abraão, que
curiosamente é da linhagem de Sem, e a imagem de Matusalém morto nos sonhos de
Noé já ressaltava a morte do homem mais velho – já que o período era de
renascimento.
Além de contrastar,
durante os dias, as etapas vividas: o nascer do sol é onde sabemos que a arca
será construída; o amanhecer é durante a parceria entre Noé e os guardiões; a
arca é visualizada pela primeira vez quando o sol está mais intenso, provavelmente
12h; o entardecer surge durante os preparativos finais; e, finalmente, o pôr do
sol é o período em que as decisões finais são tomadas e a chuva começa a cair.
Por fim, enquanto
Connelly está pouco à vontade, Watson se limita a expressões chorosas e Lerman
mostra suas limitações, Russell Crowe é o fio condutor da história: desde seus
olhares de aprovação, passando pelo martírio e solidão enquanto ouve as vozes
gritando por clemência no lado de fora da arca, até sua maneira irredutível de
agir a partir do segundo ato, o ator é expressivo o suficiente para mostrar
toda a dor de um ser que abandonou seu caráter para conseguir cumprir seus
objetivos – nesta perspectiva, a passagem em que ele se encontra sozinho do
lado de fora da arca, segurando-se apenas a uma corda, como se fosse a sua fé,
é belíssima. Também, o olhar que esboça
durante o canto de Watson para os filhos recém-nascidos é comovente e singular,
retratando a sua perdição.
Deixando claro que este
era um de seus maiores pontos desde o começo, aliás, Aronofsky focaliza
madeiras que se intercedem formando um x na hora da conversa de Crowe e Watson –
como se fosse exatamente o x da questão (com o perdão do trocadilho). O tema é,
mais uma vez, o fim e o início. “Eu estava errado,” assume pela primeira vez o personagem-título,
continuando: “Você foi uma dádiva!”. Ainda assim, o americano não parece acreditar
nessa mensagem. Se Hopkins procura frutas silvestres para sentir o sabor pela
última vez, como se fossem o próprio fim, a última tentação, Winstone sobrevive
em suas últimas palavras antes de sair do que viria a ser o campo de batalha
daqueles homens: “voltarei com legiões”, declara. Assinalando a ganância do
homem moderno. Noé realmente não é um
filme comum de Aronofsky. É um filme incomum de um cineasta incomum.