Midsommar, EUA, 2019. Direção: Ari Aster. Roteiro: Ari Aster. Elenco: Florence Pugh, Jack Reynor, Vilhelm Blomgren, William Jackson Harper, Will Poulter, Ellora Torchia, Gunnel Fred e Isabelle Grill. Duração: 1h46min.
"- Já é amanhã?
- Da perspectiva do ontem, sim."
O novo
filme de Ari Aster, Midsommar, basicamente sintetiza o horror moderno como uma
ode ao estranhamento. Com a rica evolução do gênero através dos anos, o medo
passou a ser muito mais uma associação simbólica de angústia e perturbação do
que a literalidade de um monstro ou, diria também, do próprio satã. O diabo
moderno não se mostra, mas se sugestiona. E perturba. As plateias, em conseqüência,
riem desconfortavelmente com seu próprio medo, embora não tenham certeza que
estão rindo de algo que é ruim, afetado ou perverso. É o que fez com que a
Paramount, por exemplo, fosse exatamente na contramão do marketing habitual em mãe!,
enaltecendo as críticas negativas, sobre o poderoso e controverso filme de
Darren Aronofsky, que cultivava um cinismo religioso acerca da mãe natureza e
de um Deus misógino, o que fez com que os espectadores se sentissem incomodados
com as sutilezas e com o fato de não perceber o que realmente a obra queria
mostrar.
Por quê?
Pois ainda que se assista a um filme de terror nos cinemas, a sensação que se
busca é a de prazer ou a de recompensa. Não, diretamente, a de medo.
Gostaríamos sempre de ter a certeza: a) de saber aonde o filme está indo; b)
antever situações que os protagonistas passarão; c) avaliar que jamais
estaríamos naquela condição, pois, afinal, somos muito mais inteligentes do que
os personagens. A recompensa é individual. Se nos sentirmos ignorantes ou amedrontados,
o prazer não vem, o incômodo toma conta e abominamos o que estamos assistindo.
É de uma
ousadia contagiante, portanto, que Midsommar entende o papel que está disposto
a ele – ao abordar as nossas próprias limitações diante de outra cultura. Qual
a nossa barreira, afinal, diante de outra sociedade? Quão volúvel é a moral?
Ou, melhor, o nosso senso de decência? A sensação de imoralidade de uma obra
passa pelas nossas certezas sobre o que é certo e o errado, sem notar a
necessidade colonizadora. Quando os americanos chegam ao local da Suécia em que
passarão seus próximos nove dias, eles são recebidos com presentes, fartura,
música e rituais. Ao princípio, avalia-se com curiosidade o diferente, o
estranho, como tudo que se começa – há o fogo, a comida e o canto. Saber-se-á
que há algo errado no instante em que eles passarão de catequistas de sua
cultura para os catequizados. Isso é o que assusta, na obra de Ari Aster, e nos
joga numa noção de espaço-tempo tão oportuna e diferente.
Um dos
diálogos trocados no primeiro contato com o Midsommar real é:
– Que
horas são?
– 21h.
– Mas o
céu está azul. Não está certo.
– É assim
na Suécia.
– Não,
isso está errado. Tem algo errado aqui.
Para um
americano que foi para outro país para provar drogas e sexo diferentes, algo
está errado. Ao homem que foi estudar, o errado é interessante. Para quem foi
tentar passar pelo processo de luto, por sua vez, o estranhamento se torna
instigante e, naturalmente, acolhedor. Não à toa, Aster nos coloca diante de
duas cenas emblemáticas de suicídio no início de cada parte: na primeira, o
suicídio de uma americana dita o rumo da vida da irmã afetada, que ainda lida
com o assassinato dos pais pela própria irmã; na outra, o suicídio não é visto
como tal, ele é o fechamento da vida, de um ciclo, no qual há uma celebração
religiosa e um compartilhamento de dor e prazer. No primeiro, uma mangueira dos
bombeiros (de cor amarela) nos leva à morte. No segundo caso, girassóis nos
orientam pela estrada. O choque está em como nos sentimos diante disso.
"Não
pule. Não faça isso, senhor. Ajudem ele, seus monstros!", é o que grita um
dos casais, ao se deparar com esse choque de realidade.. É normal que queiramos
passar a nossa noção do que é certo, como se apenas nós a possuíssemos. É o que
o casal faz. Ao olhar para os outros, não entendendo como podem achar aquela
situação normal, o estranhamento se transforma em pavor puro, no contato
inesperado com a morte. Ao se tornarem os diferentes, eles tentam ir embora.
Seria
desonesto afirmar que o mundo de Midsommar é ético, no entanto. Essa não é a
proposta de Ari Aster, embora o cineasta se interesse pela semântica da
expressão. Ele se encanta pela nossa peregrinação e nosso contato diante da
morte e da vida. O ciclo que pode ser tanto acalorado quanto sombrio. Na
pequena comunidade, a dor, o sexo, a alegria e a dança são compartilhadas. Se
dá e se recebe, na mesma medida. Tudo é calculado. Tem o brinde à morte e tem o brinde à vida. É uma terra de
controle, onde se conhece o destino de cada um. Há uma cena em que Chris encara
um urso no fogo, ao aguardar Siv. Ele vê seu fim e não o percebe, assim como
não perceberá novamente na cena seguinte ao observar o equilíbrio da cruz, da
dança e do templo.
Além da família, é a confiança, a segurança e
a harmonia que consentem Dani se deixar levar e se transformar na pequena
comunidade. Cheia de flores, que em sua "civilização" representaria o
luto pós morte, ela agora se sente em paz e sorridente por poder determinar e
controlar o fogo e a vida – quem vive, quem morre.
O mundo de cores de
Midsommar
(leia essa parte somente depois de ter assistido ao
filme)
Quando
se observa o primeiro quadro do filme, a natureza dúbia das coisas é exposta,
evidenciando a morte no azul e o calor quase cegante e harmonioso do amarelo. A
atmosfera mundana será sempre orientada por esses extremos, os quais
correspondem ao equilíbrio do mundo e cercam o emocional de cada personagem, em
Midsommar. O desenho de produção da obra-prima de Ari Aster comprova
constantemente dualidades em cada enquadramento do filme – torna-se comum, por
exemplo, flores vivas e mortas sendo dispostas de um lado a outro, enquanto os
protagonistas permanecem no centro do quadro, abajures inclinados ou retos
mostrando a delicadeza da harmonia das salas em instantes perturbadores e até
mesmo quadros díspares orientando essas individualidades: note acima da
protagonista uma criança beijando um urso, com o inconsciente dela mostrando o
predador que compartilha seu coração, num mundo abusivo. Da mesma forma, avalie
como sempre existe contraposição em cada frame da primeira parte, às vezes um
papel e uma caneta estão separadas por um notebook; ou Dani está entre um pente
e um retrato; ou ela está no centro enquanto fala ao telefone e retratos
desfocados preenchem o lado direito, ao passo que, no lado do telefone, no de
Chris, somente há uma parede vazia.
Os
próprios ambientes representam a batalha interna da protagonista, de tal modo, quando
observamos as cores opostas da cozinha e da sala, o abajur reto e o outro
inclinado no mesmo cômodo, além de quadros azuis e amarelos que parecem ir se
transformando tanto quanto a protagonista – em determinado momento, o quadro
azul prevê estações da lua, sem completude, ao mesmo tempo que o amarelo
evidencia cabeças em raízes de árvores. Um flerte belíssimo com o primeiro
quadro do filme, veja só.
Existe
algo de Anticristo, de Lars Von Trier, e até mesmo Melancolia, no seu início: o
público se vê diante de algo que metaforiza o amor, a depressão, o luto e o
controle sobre a morte. As similaridades com Hereditário, nesta esfera da
“fraqueza” perante o luto já se mostra uma marca visível do cineasta,
inclusive. Embora sejam irmãos quase siameses, Hereditário e Midsommar mostram
que há diferentes formas de lidar com a perda. Enquanto um mexe com a
passividade e o aproveitamento de nossa fragilidade, o outro é permissivo. Dani
quer que seu destino se torne aquele. Aos poucos, ela passa pela desvinculação
mundana para chegar a uma cura individual.
Aliando-se
à esta ótica, os figurinos orientam o espectador conforme as personalidades dos
personagens se desenvolvem também. Perceba como os azuis dos personagens vão se
tornando cada vez mais claros em determinadas pessoas. Apenas Simon, a esposa,
Mark e Christian permanecem com camisetas com tons azuis fortes. Eles são
pessoas que jamais conseguem se desprender do mundo que conhecem. De sua
cultura. O único instante em que Josh e Chris são visualizados com as mesmas
roupas acinzentadas é quando são forçados a fingir um compartilhamento de
idéias que não acontecerá na prática. Uma dissimulação que sabem fazer bem.
Já
Dani começa com uma camiseta salmão, passa para uma camiseta estampada com
estrelas até chegar às cores claras daquele universo. Pelle cobre aos poucos o
azul americano com a túnica branca, até não ter mais nada por baixo, quase de
forma imperceptível, igualmente. As cores orientam muitíssimo bem a narrativa
de Ari Aster, que ainda estabelece o contraste entre o azul e o amarelo na
comunidade sempre que haverá uma morte (o casal que irá ao Ättestupa usa
túnicas azuladas, p.e.), na disposição da natureza (a própria meca triangular
amarela da comunidade tem portas azuis) e as flores azuis criam um norte
bastante mórbido – ainda mais quando paralelas aos cabelos loiros da
protagonista durante um jantar.
Ari
Aster contamina sua narrativa com uma atmosfera que denuncia sua humanidade,
mesmo que queira mostrar um mundo longe de como a conhecemos no dia a dia. Um
exemplo disso, talvez, seja a melhor cena do filme, onde o diretor filma o sexo
com uma delicadeza tão forte quanto macabra. Ali, como no luto ou na dança das
bacantes, há alucinógenos, fraqueza e força, aceitação e rompimento de barreira
e, finalmente, ritos de passagens. A ruiva consente à Chris o sexo não para o
prazer, mas para um ciclo de fecundidade. Ao passo que todas as matriarcas de
diferentes gerações formam uma espécie de cordão (um umbilical,
metaforicamente), o homem se vê diante do sucumbimento ao desejo. É a última
necessidade, igualmente, que Dani precisaria para se desintoxicar do sonho
americano, do mundo que antes conhecia e de sua dependência. Ao vomitar, ela
expurga. Ao compartilhar a sua dor com dezenas de irmãs novas, ela percebe,
como o espectador, que há dor e prazer, no sexo, na vida, na traição e no
mundo.
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