31 de julho de 2014

Confia em Mim

Idem, Brasil, 2014. Direção: Michel Tikhomiroff. Roteiro: Fabio Danesi. Elenco: Fernanda Machado, Mateus Solano, Fernanda D’Umbra, Bruno Giordano, Geraldo Rodrigues, Antonio Saboia. Duração: 85 min.

Há um sistema de teledramaturgia rigoroso que o diretor Michel Tikhomiroff planeja seguir ao decorrer de Confia em Mim. Alimentando-se de um roteiro que conta com personagens irritantes o bastante para terem medo de recorrer à polícia quando são vitimas de um estelionatário ou policiais debochados característicos deste apelo novelesco, que apenas serve para estimular tramas maniqueístas, o cineasta sempre evita tocar em abordagens mais profundas e se rende ao mesmo vazio existente nos relacionamentos presentes no longa-metragem. Assim, criando quase uma fábula familiar contada por pais ricos que querem ensinar os seus filhos mimados que não se pode confiar em ninguém.

Deste modo, seria melhor começar essa crítica de outra forma, portanto: era uma vez uma família oriunda de uma novela malsucedida das nove, onde existiam duas irmãs completamente opostas – a primeira, uma próspera empreendedora do ramo de relógios, amada e a favorita de sua mãe; a segunda, cinderela, ops, Mari, que, por ser uma mulher independente e não querer seguir o caminho que sua mãe quis para ela, tornou-se a menos afortunada daquela família, construindo uma relação complicada com seus próprios familiares. Assim, por possuir essa insegurança amorosa acerca de suas qualidades desde cedo, Mari se apaixona perdidamente por um rapaz que encontra em uma exposição de vinho certo dia. Claro que o primeiro encontro é marcado por invadir restaurantes de hotéis e entrar ilegalmente em lugares de um teatro, mas tudo em nome do amor.

Um amor, aliás, que parece ser arquitetado em questão de dias. Afinal, o que importa a compreensão do espectador quanto a natureza daquele sentimento nutrido pelos dois? Porque é claro que não precisamos entender por que uma pessoa insegura e reclusa sentimentalmente como Mari iria entregar R$ 200 mil nas mãos de alguém que conheceu há semanas. Menos importante ainda é a história paralela entre Caio e sua outra vítima, que, veja só, acha que nada de ruim acarretará em subtrair meio milhão de reais de uma instituição para ganhar um dinheiro fácil.

E se Mateus Solano não parece ter esquecido os trejeitos de seu personagem televisivo mais famoso ou consiga passar eficientemente a falsa segurança de seu Caio, Fernanda Machado é ainda pior nas sequências que passa com a família ou na cena que tenta avaliar o que de fato aconteceu com o seu dinheiro.


Nenhum dos dois, por outro lado, têm culpa no tato do roteiro com uma história que poderia render uma análise densa sobre o controle emocional que estelionatários possuem em suas vítimas; deste modo é trágico a narrativa terminar com uma mensagem de vingança com as próprias mãos – lembrando-nos novamente da precariedade da estrutura ditada pelo diretor. Algo que até poderia ser incluído num fim de capítulo de uma novela de Aguinaldo Silva, mas que nunca poderia ser contido num longa-metragem. 

25 de julho de 2014

Planeta dos Macacos: O Confronto


Dawn of the Planet of the Apes, EUA, 2014. Direção: Matt Reeves. Roteiro: Mark Bomback, Rick Jaffa e Amanda Silver, baseado nos personagens de Jaffa e Silver, além do romance de Pierre Boulle. Elenco: Andy Serkis, Jason Clarke, Gary Oldman, Keri Russell, Toby Kebbell, Kodi Smit-McPhee, Kirk Acevedo. Duração: 130 min.

Arrisco dizer que Planeta dos Macacos: O Confronto é exatamente o filme que Charles Darwin e George Orwell se uniriam para realizar. Completamente calcado na evolução inversa, o homem para o animal, o cineasta Matt Reeves compõe sua narrativa totalmente centrada no caminho percorrido pelo homem até chegar ao estágio de passagem ao novo mundo que iremos observar. Deste modo, o olhar sombrio que inicia este filme é marcante por indicar a felicidade extinta daquele simpático César, o qual analisávamos no filme anterior e agora é o líder dessa “nova” civilização (e uma espécie de rei símio, como denuncia ele se dirigindo a um humano do alto de uma pedra). Igualmente, Reeves pontua sua história de forma ampla e profunda, com a análise evolutiva do mundo dos animais, assim mostrando a sucessão de seus sinais, linguagem, luta, caça, alimento, domínio e a primeira expressão: note, aliás, que é um grito de “vão embora” para os humanos. Nada é à toa, o que também ressalta os animais iniciarem nas cavernas, passando aos seus filhos sua racionalidade, para depois andarem em duas patas.

Ao mesmo tempo, o roteiro é quase transformado numa adaptação magnífica de A Revolução dos Bichos, que aqui possui Koba como seu Napoleão e César como Bola-de-Neve. Os humanos como invasores, a grande batalha, a liberdade (“macaco não mata macaco”), um dos símios se rebelando e usando objetos humanos, passando-se por ditador – o livro de Orwell é bem exposto no pouco mais de duas horas de filme. No novo mundo de Reeves, os humanos são comprimidos nas paredes que construíram, as portas se abrem aos macacos do nosso ponto de vista, o desarmamento é a mensagem e a nossa marca no mundo não passam de memórias num Ipad. É uma visão dura, mas impactante. Algo que consegue render até uma boa imagem ao primeiro filme. Avalie, por exemplo, qual a forma mais cruel que os símios conseguem imaginar para torturar os humanos: jaulas.

Se o César que conhecemos não existe mais, ele apenas evoluiu. Nem o olhar que inicia a narrativa se mantém o mesmo, como denuncia o fantástico (e coeso) close final – e muito mais que novamente apontar para uma metáfora belíssima de A Revolução dos Bichos, os olhos de César são de promessa. A sobrevivência agora é outra.

• Crítica originalmente produzida para o Diário Catarinense


20 de julho de 2014

Até o Fim

All Is Lost, EUA, 2013. Direção: J.C. Chandor. Roteiro: J.C. Chandor. Elenco: Robert Redford. Duração: 106 min.

A solidão num naufrágio pode ser interpretada de diferentes formas, dependendo, claro, da perspectiva que o diretor quer explorar em sua narrativa. Em Até o Fim, portanto, o promissor J.C. Chandor enxerga sua história não como um exame de autoconsciência ou algo do tipo, mas como um teste de sobrevivência para alguém que só pensará nisso no decorrer do longa-metragem.

Assim, quando já iniciamos o filme com o barulho da água do mar batendo no que parece ser os destroços de alguma embarcação e a voz cansada e triste de Robert Redford ressoa pedindo desculpas, num “sinto muito” comovente, apontando que o que lhe resta é apenas um corpo e alma intactos, nada mais, a gravidade da situação nos é apresentada de forma extremamente consciente e instigante. Da mesma forma, o esforço do personagem é sempre mais importante através de seu olhar ao invés de sua voz; sabendo-se disso, o design de som é ainda mais marcante por compreender o completo caos que o personagem vive em alto mar, estendendo o perigo a cada tentativa de escape. Observe, sob esta ótica, o sorriso de Redford ao conseguir consertar o casco de seu barco para depois visualizarmos a tensão no mastro, numa grua que acompanha o seu empenho ao aviso de tempestade no meio do caminho.

E se a edição de som é perfeita em administrar os sons das batidas no casco, o uso de uma corda ou o movimento da vela e a mixagem é impecável em atribuir cada noção específica para o instinto do personagem em perceber o caminho do vento, a direção de Chandor também contribui muitíssimo para a tensão da narrativa. Deste modo, o enquadramento de Redford segurando uma corda e olhando para o horizonte, o seu reflexo numa poça de água que acaba de inundar o seu quarto e a intensidade da cena que o protagonista tenta religar um rádio são cenas interessantíssimas. Igualmente, o cineasta é sutil em ressaltar uma aliança para criar ainda mais empatia ou as feições do ator, que dão ainda mais uma sensação de habilidade e sabedoria. Além do mais, o roteiro de Chandor também merece destaque por concentrar suas forças em contar a tragédia, não o antes e o depois, assim fazendo com que soe como se o próprio sobrevivente a contasse para nós: “Aí acordo com um rombo no meu barco!”.

Ao mesmo tempo, a trilha sonora de Alex Ebert nunca é intrusiva, e, embora possua acordes que tentam trazer um clima épico para a sobrevivência, é sempre administrada conscientemente. O mesmo se pode falar da fotografia de DeMarco, que capta o azul intenso do começo para a atmosfera cinzenta e sem vida que a narrativa passa a requirir. Note que o mar, antes gigante, torna-se opressor, inconfiável, deixando o protagonista à sua mercê. Da mesma forma, o enquadramento que Chandor escolhe para mostrar o distanciamento entre barco e homem é ótimo por nos fazer entrar dentro do bote, como se indicasse o afastamento final – o desprendimento de algo que precisava afundar. E observe que só após o desprendimento que avaliamos o bote salva-vidas de frente.

Contando com uma atuação extremamente concentrada e intensa de Redford, que chega a denunciar as sequelas de tanto tempo sem falar ao religar um rádio e nos oferece uma perda de controle gradativa e verossímil, Até o Fim é um longa-metragem que não se preocupa em mostrar de quem é a mão que se estenderá ao sobrevivente, muito menos em quem é aquele sobrevivente. É uma obra que somente se permite a contar uma história de sobrevivência. E faz com exatidão.

17 de julho de 2014

Quando Eu Era Vivo

Idem, Brasil, 2014. Direção: Marco Dutra. Roteiro: Gabriela Amaral Almeida e Marco Dutra, baseado no livro A Arte de Produzir Efeito Sem Causa. Elenco: Antônio Fagundes, Marat Descartes, Sandy Leah, Gilda Nomacce, Helena Albergaria, Kiko Bertholini, Tuna Dwek. Duração: 108 min.

Quando escrevi sobre o excepcional Trabalhar Cansa, em 2011, eu apontei que o mais impressionante da estrutura narrativa criada por Juliana Rojas e Marco Dutra era a vantagem de ser um falso drama. Os temores do público eram provenientes da dose dramática depositada na realidade que a protagonista vivia. O terror não era definido pelo gênero, mas pelos acontecimentos familiares no roteiro. No seu primeiro longa-metragem solo, Dutra não rompe essa barreira entre o sobrenatural e o real, mostrando-nos desde o princípio qual a sua proposta: o caminho que percorreremos não é seguro ou convencional, mas nem por isso imprevisível ou inverossímil.

Desta forma, aproveitando-se do argumento ocultista que tem em mãos, o cineasta já denuncia uma série de reproduções no primeiro instante que acompanhamos Júnior chegando ao prédio de seu pai, após ter saído de casa. No enquadramento geral, Dutra nos indica uma cadeia de desenhos repetitivos que estão emaranhados nos vidros do edifício para, enfim, logo depois, deixar-nos do lado de fora, mas mais próximos daqueles – compreendendo que os desenhos que antes pareciam tão sistemáticos, possuem algumas minúsculas divergências que haviam passado despercebidas. Ao mesmo tempo, o diretor nos priva de algo mais explicativo sobre a situação, mas insiste em evidenciar o afastamento entre pai e filho: perceba, assim, o momento que uma divisória no vidro os separa, com a curvatura de Júnior e sua mala, além do mais, lembrando bastante as linhas padronizadas na vidraça.

Do mesmo modo, pontuando lentamente sua obra com algumas dicas e ancorando-se na brilhante montagem de sua contumaz parceira, Juliana Rojas, Dutra intriga muito mais na sugestão do que realmente na execução. Neste caso, embora não seja muito orgânica a análise das mudanças no apartamento abrangidas pelo protagonista ao entrar na sala, a primeira indagação de Júnior ser referente às grades que eram acrescentadas nas janelas é assustadora. Igualmente, o diretor volta a explorar os sons quase que exageradamente: logo, o grito de um louco usado no decorrer do filme só não se mostra um artifício tolo, porque a natureza dele se revela um pouco mais ambiciosa. (Abrindo um parêntese para o caso citado, é fácil assumir que as “aparições” dos gritos sejam justamente para recordar o destino do irmão, e não é à toa que as mesmas vozes são ouvidas novamente no local em que se reencontram.) Ainda, o design de som é perfeito em conferir o tom requerido, de tal modo: os sons simples de uma colher, um choro, o som do estofamento acabam denotando os ares ensurdecedores inerentes à personalidade do próprio Júnior – e meu favorito, talvez, seja o som de uma cadeira remetendo a uma lâmina.

Desconstruindo o passado e o presente simultaneamente, ainda por cima, o diretor passa a administrar a intensidade e a estranheza daquele apartamento com exatidão, impondo uma mudança gradual à narrativa e ao protagonista: avalie, consequentemente, como se sucede a atração de Júnior por Bruna (algo que culmina numa cruza interessante de Enquanto você dorme com Psicose). A montagem de Rojas, sob esta ótica, é excelente em lidar com o passado inserido no presente dos personagens: veja como logo depois da emblemática cena do personagem de Descartes analisando Bruna no banho, só aí que assistimos a real relação da mãe com seus filhos. Aliás, é justamente a partir dali que decorre a mudança feita nos aposentos por Júnior. É interessante perceber a configuração da perda de lucidez do protagonista, neste ponto, pois no primeiro ato é quase insistente o modo com que Dutra aponta a sua tentativa em soar natural naquele ambiente, mantendo uma postura concentrada – novamente, as paredes da sala que o separam do pai e o seu isolamento apenas são ofuscados pelas linhas da parede. A seguir, é clara a primeira vez que compreendemos o indício de loucura: a maneira com que ele mexe a cabeça ouvindo uma música infantil.

E obviamente isso não seria possível sem a atuação fantástica de Marat Descartes, que envolve com precisão o jeito de Júnior em sustentar o seu combate moral vivido intensamente dentro de si: a maneira com que se infantiliza, voltando a falar com seu pai sobre a “mamãe”, o domínio que a simples figura dela reflete sobre ele, a fragilidade rebelde que destaca em determinadas cenas – ele mostrando a língua para a namorada de seu pai. Sem deixar de citar dois momentos marcantes: o primeiro, quando analisa nervosamente a recepção de Bruna quanto a um presente dado por ele; noutro, a expulsão de Lurdinha da casa da mãe, (E aqui vale outro parêntese, já que a frase dita por Miranda no tratamento espiritual – “Você não vai entrar aqui!” – se revela um aviso para a mente debilitada de Júnior: afinal, a pose dela lembra muito a de Olga.) Já Fagundes, por sua vez, mostra-se nervoso desde a chegada do filho em sua casa, temendo que ele tenha o mesmo destino do irmão. Assim, o seu personagem, mesmo que tente tratar o filho com singeleza, manifesta-se num misto de irritação, preocupação, nostalgia e assombro durante todo o percurso – e a perspectiva da respiração profunda de Sênio é inquietante na cena que os irmãos se reencontram. 

Como se não fosse o bastante, o cineasta também expõe, nas cores marginalizadas, a insanidade à margem do relacionamento daquela família: e mesmo que Sandy não seja uma boa escolha para salientar a mudança na sua personagem, note como ela acorda oposta ao Júnior no segundo ato, mas tapada com a mesma manta que era usada por ele quando a influência ocultista o havia reprimido. Além disso, as cenas em que os dois cantam a melodia composta pela mãe são os momentos mais intimidantes do longa, principalmente quando Dutra enquadra a foto da mãe no meio dos personagens. E se a sessão espiritual de Miranda banaliza um pouco a obra, oferecendo uma abordagem brega que não faz jus ao filme, ainda que possa ter sido a intenção, o mesmo não se pode dizer do ritual com as cabeças de gelo – sempre perturbadores, sobretudo na ótima sequência final (“Levo a cabeça comigo!”).

Um ritual que serve para balançar ainda mais a relação entre pai e filho, que, agora, finalmente atingiu o que ambos esperavam – ainda que em expectativas diferentes. E é necessário, nesta linha de raciocínio, retornar a uma afirmação curiosa de Júnior para Bruna no segundo ato: “Quando eu era vivo, eu era mais quente!”. Na história de Dutra, a declaração, como esperado e entendido, não tem a ver com fantasmas, mas com a nossa própria essência. Porque Júnior não estava mais ali, naquele momento. Estava morto. Ao menos, metaforicamente.

14 de julho de 2014

Lunchbox

Dabba, Índia, 2013. Direção: Ritesh Batra. Roteiro: Ritesh Batra. Elenco: Irrfan Khan, Nimrat Kaur, Nawazuddin Siddiqui, Nakul Vaid, Yashiv Puneet Nagar, Denzil Smith. Duração: 104 min.

O mais envolvente de filmes como o indiano Lunchbox é a genuína simplicidade. Sem a expectativa de criar algo extraordinário demais ou que incomode por sua dramatização excessiva, o diretor Ritesh Batra compreende que a autorreclusão e o nosso condicionamento a abraçar a infelicidade em casos que não conseguimos lidar é por si só uma história bastante ambiciosa. E é exatamente isso que é o mais empolgante na vida de Saajan e Ila: afinal, elas são duas pessoas prisioneiras de suas realidades que, finalmente, acham uma saída ao se encontrarem.

Escrito pelo próprio Batra, a trama acompanha uma dona de casa, Ila (Kaur), que está num relacionamento cada vez mais insustentável com seu marido. Vivendo num apartamento apertado e sem privacidade alguma, já que a vizinha de cima (sua tia) está sempre manifestando suas opiniões sobre tudo, ela utiliza um serviço de entrega de comida popular chamado Mumbai Dabbawallahs para entregar o almoço para o marido. Um dia, contudo, um erro faz a entrega chegar ao viúvo Saajan (Khan), que descobre uma oportunidade rara de sair de sua rotina. Logo, os dois começam a trocar mensagens por meio das embalagens usadas pelo serviço de entrega, criando uma espécie de apoio mútuo em momentos delicados de suas respectivas vidas.

Estabelecendo o dia a dia de seus protagonistas desde o princípio, acompanhando a situação em que vivem, Batra é eficiente em retratar a mudança completa que uma simples falha ocasiona numa rotina tão convencional. Assim, ainda mais que a surpresa de Ila em descobrir que seu marido não havia recebido aquele instante de carinho produzido por ela, representado por sua comida favorita, a empolgação de Saajan de provar uma culinária diferente passa, igualmente, ao lhe diferir dos demais – como aponta o personagem Shaikh logo depois. Da mesma forma, é intrigante analisar como o próprio processo de correspondência passa a ser uma interferência tão grande na vida de ambos, que faz com que Ila pense realmente estar sendo infiel ao seu esposo (“O caminho para o coração é o do estômago”). . Neste caso, além da citada cena em que ela propõe uma forma de se aproximarem novamente através da comida, note o medo da personagem ao ouvir do esposo que a comida estava fazendo mal para seu estômago, como se ele tivesse descoberto que as atenções dela não fossem as mesmas ou que ela o ferira. E isso, ainda que não explicitado, vindo de um homem que dá ares de que claramente está traindo Ila ao decorrer do longa-metragem, desde sua falta de atenção ao seu isolamento misterioso.

Já Saajan é um sujeito pragmático, organizado e somente um número numa fábrica que lida com números. Perto de sua aposentadoria, a aparição de Ila em sua vida o faz conseguir criar vínculos emocionais novamente, algo que havia perdido desde a morte precoce de sua esposa. O seu relacionamento com Shaikh é tão diferente para ele, por exemplo, pois ele o faz lembrar Ila – a primeira conversa é justamente sobre o almoço. (E é importante ressaltar o belo ícone registrado no tapete na frente do apartamento de Ila quando a entrega volta pela primeira vez.) Igualmente sensível, por sua vez, é a maneira que o personagem de Saajan passa a se dar conta da idade: começando por uma simples conferida no jantar de uma família, passando pela cena em que ganha um lugar no ônibus, para chegar ao encontro no restaurante. Do mesmo modo, a química entre os protagonistas é gritante na troca de cartas, rendendo grandes devaneios – o meu favorito, talvez, seja aquele do filho sendo usado para manter um casamento.

Finalizando com uma ótima coesão, ao conferir certo peso a uma declaração de Shaikh (“o trem errado pode levar à estação certa”), Lunchbox é uma grata surpresa de um cinema que sempre teve como objetivo celebrar uma felicidade através da dança e de seus exageros visuais, mas que aqui encontrou na simplicidade sua verdadeira aptidão.


11 de julho de 2014

Transcendence - A Revolução

Transcendence, Inglaterra/China/EUA, 2014. Direção: Wally Pfister. Roteiro: Jack Paglen. Elenco: Johnny Depp, Rebecca Hall, Paul Bettany, Morgan Freeman, Cillian Murphy, Kate Mara, Cole Hauser, Clifton Collins Jr. Duração: 119 min.

Transcendence sofre do mesmo problema que meia dúzia de outros sci-fis lançados nos últimos anos: o festival narrativo da retórica. De fato, pois ao roteirista só cabe responder perguntas com outras perguntas, criar uma atmosfera razoavelmente relevante socialmente (neste caso, como o uso tecnológico nos afeta) e o diretor promover uma dezena de símbolos para designar apelo visual e manter misterioso algo que nenhum dos dois sabe como revelar. O que torna o longa-metragem tão constrangedor, portanto, não são suas inverossimilhanças ou a falta de criatividade constituída na trama; mas, sim, o fracasso dos envolvidos até em seguir uma simples fórmula.

Porque, abdicando completamente da realidade que tanto quer se palpar, no decorrer do filme, o roteirista Jack Paglen e o diretor Wally Pfister não nos conseguem inserir nem num contexto apocalíptico, que qualquer criança de sete anos que soubesse da importância da tecnologia na nossa sociedade poderia imaginar. Assim, Pfister apenas indica uma porta sendo bloqueada por um (agora supérfluo) teclado de computador, aponta os semáforos apagados e ensaia os impactos no comércio local (“não temos leite, não temos nada, não pergunte”, revela um cartaz numa mercearia). Nunca tentando aprofundar o que levou a sociedade até aquele instante ou instituindo um cenário que decorre das consequências da tal catástrofe. Prefere apenas colocar Bettany caminhando por ruas aparentemente arrasadas narrando acontecimentos passados, que conduziram até ali.

Além de voltar a ensaiar o impacto sobre a humanidade do uso da tecnologia, neste primeiro momento, o cineasta também enquadra uma rachadura no meio de uma casa como sinônimo da instabilidade que se encontram e girassóis numa casa no “meio do nada”, onde residiria uma espécie de esperança. A partir daí, o roteiro de Paglen toma para si a responsabilidade e passa a jogar conceitos em tela para tentar estabelecer uma base dramática para o argumento, algo que nunca ocorre. Nesta perspectiva, frases como: “a jornada é mais importante que o destino” ou, a pior de todas, “Então você quer criar um Deus? Seu próprio Deus?” são sintomáticas. 

Como se não bastasse, Paglen sugere pensar que nenhum sci-fi que se preze pode ser algo marcante sem uma série de coincidências que leve seus personagens ao clímax final. Desta forma, um personagem morre pouco depois de mandar os arquivos necessários para o único complexo do mundo que não sofreu um ataque em grande magnitude e que, aliás, passa a ser o único lugar no globo capaz de realizar as pesquisas necessárias para o resto do filme. Do mesmo modo, um cientista pode virar cirurgião conforme o roteiro precisar e a solução para induzir um sobrevivente de uma tentativa de assassinato a servir como cobaia é a bala que o atingiu estar contaminada por radiação (e assumo que me segurei para não colocar essa solução genial em caixa alta). Mas não menos brilhante que desligar a internet do mundo inteiro (!) para parar a consciência de um cientista megalomaníaco que constrói uma pequena fortaleza em uma cidadezinha americana.

Ao mesmo tempo, muito mais que a nula tensão entre os unpluged e os cientistas, a química entre Rebecca Hall e Johnny Depp inexiste. E fica complicadíssimo, consequentemente, apoiar-se no vínculo entre os dois para definir os rumos da história – note, por exemplo, a tentativa desesperada de Depp para sublinhar algum carinho pela esposa (como nos mostra a risada dele ao afirmar que ela está mentindo ou a confissão de que irá sentir a falta dela para o amigo Max, mesmo que nunca seja visto muito tempo com Evelyn num mesmo local). Por outro lado, Hall possui o momento mais interessante do relacionamento, quando decide retornar a Will e volta a usar a aliança.

Chegando a entrar no campo da regeneração, Transcendence é um apanhado de sobras de sci-fis distintos com o acréscimo de outras falhas.   


7 de julho de 2014

Alemão

Idem, Brasil, 2014. Direção: José Eduardo Belmonte. Roteiro: Gabriel Martins, com a colaboração de Leonardo Levis. Elenco: Milhem Cortaz, Cauã Reymond, Gabriel Braga Nunes Marcelo Melo Jr., Caio Blat, Otávio Muller, Mariana Nunes, Antônio Fagundes. Duração: 90 min.

Logo no início de Alemão, é interessante como o espectador é apresentado a um promissor ambiente que, além de aprisionar seus personagens – como indica um plano atrás de grades num beco –, troca a música alta e a diversão pela troca de tiros e extrema violência. Da mesma forma, logo em seguida, o diretor não esconde a sua tentativa de versar o contraste entre favela e arranha-céus imensos num enquadramento inicial. É inquietante, portanto, a qualidade deplorável que passa a tomar conta do longa-metragem poucos segundos depois, já que, a princípio, seus envolvidos haviam alguma imaginação do que fazer com a história. 

Escrito por Gabriel Martins, com a colaboração de Leonardo Levis, o filme conta a história de cinco policiais infiltrados na comunidade do Alemão, que são descobertos momentos antes da polícia tomar o "morro". Eles passam a se esconder por suas vidas, enquanto o líder da favela "Playboy" (Reymond) sai à caça dos agentes.

Juntando imagens de arquivos com establishing shots sem muita imaginação e uma câmera subjetiva intensa, Belmonte é extremamente limitado ao lidar com a tensão que a narrativa necessita: assim, sempre precipitado nos cortes, a perseguição de moto no primeiro ato ou os tiroteios carecem da pressão que as sequências requerem - aliás, o clímax é tão problemático nesse aspecto, que parece indicar uma decupagem muito precária. Ao mesmo tempo, a mise-en-scène denuncia ainda mais o amadorismo; e basta observar o encontro dos policiais na pizzaria do Doca para perceber que cada ator parece se posicionar conforme sua vontade. 

O roteiro de Martins também sofre do mesmo problema ao nunca saber ao certo o que quer explorar ou a natureza da sua mensagem. E é muito notável a falta de argumento a medida que vamos avançando na história, pois muito pior que os diálogos enlatados ("posso até cair, mas levo esses filhos da puta comigo") são as retóricas dignas de um aluno da sétima série que recém está aprendendo algo sobre a criminalidade: "essa merda é mais para vocês que para gente", diz o personagem de Caio Blat. A trilha sonora de Guilherme e Gustavo Garbato, porém, é ainda pior ao tentar se sobrepor a todo o momento e não se preocupa em acompanhar o mesmo ritmo da narrativa: note o instante em que Carlinhos entra na pizzaria e os acordes parecem ter saído de um filme de suspense de quinta. O mesmo se pode dizer do design de produção de Denis Netto, que só expõe seus ambientes superficialmente: se a jacúzi de "Playboy" é o centro de destaque da residência do antagonista, o esconderijo dos policiais não fica claro - num primeiro momento, ele é humilde, nada espaçoso, como mostra as camas, para depois ele ser grande e estreito sem muitos porquês. 

E se Antônio Fagundes não tem tempo para demonstrar seu duelo interno, ainda que seja o dono do filme na cena final, o restante é ainda mais ineficaz: Cortaz se restringe ao temperamento explosivo, Blat inexiste, Braga Nunes faz o tipo misterioso, ensaiando um romance bobinho, e Marcello Melo Jr até tenta acrescentar alguma profundidade, mas todas suas tentativas de apontar a importância da namorada para ele são patéticas.

Apelando até mesmo para frases explicativas que tentam criar uma empatia imediata com o público ("eu voltarei para casa, filha" é o exemplo mais claro), Belmonte é totalmente inexperiente ao guiar o drama daqueles personagens, parecendo, no final, muito mais novelesco do que deveria. Uma pena. 

3 de julho de 2014

Espelho, O

Oculus, EUA, 2013. Direção: Mike Flanagan. Roteiro: Mike Flanagan e Jeff Howard, baseado em uma história idealizada por Flanagan e Jeff Seidman. Elenco: Karen Gillan, Brenton Thwaites, Katee Sacklhoff, Rory Cochrane, Annalise Basso, Garrett Ryan. Duração: 104 min.

De certa forma, como apontado em seu novo longa-metragem, Mike Flanagan já criou um tipo de assinatura: criar um vínculo com seu público através de situações dramáticas vividas por seus personagens, que são cobertas pelo sobrenatural. Não que seja uma coisa nova, mas trabalhada de forma eficiente, a situação pode render momentos tão sublimes como os mais saudosos da RKO (produtora americana de grande prestígio nos anos 40), quando o tormento psicológico era muito mais imperativo que o susto final. E é uma pena que, por mais aventureiro que o diretor seja em construir seus thrillers explorando essa faceta, as suas narrativas nunca cheguem ao resultado ideal pretendido, frustrando muito mais, justamente, pela atmosfera pretensiosa.

Portanto, assim como o seu filme anterior, Absentia, Flanagan se move pelo princípio realista dos nossos temores. Nossas incertezas e medos são facilmente explicados, ainda que pareçam assustadores para a completa compreensão. Tim e Kaylie, sob esta ótica, são personagens traumatizados pela morte inexplicada dos pais. Quando o jovem garoto volta para a casa, após sair de uma instituição psiquiátrica, ele passa a ter certeza de que o motivo da tragédia que assolou a família é um espelho. Acompanhado de sua irmã, Tim tenta provar que o crime que vitimou sua mãe seria provocado por algo sobrenatural. A montagem do próprio Flanagan, nesta perspectiva, tenta arquitetar uma forma que deixe sua atmosfera mais intrigante pelo paralelo entre presente/passado, mas isso acaba sendo mortal para o ritmo de sua realidade.

Além do mais, caso o cineasta conseguisse administrar o contraponto do sobrenatural e do drama, o clímax acabaria sendo muito mais impressionante do que a decorrência final. É uma atmosfera típica de diretores como Pascal Laugier (o do Homem das Sombras, não o de Martyrs), e que carece da mesma sensibilidade.

*Crítica concebida originalmente para o Diário Catarinense