13 de março de 2014

Justin e a Espada da Coragem

Justin and the Knights of Valour, Espanha, 2013. Direção: Manuel Sicilia. Roteiro: Matthews Jacobs e Manuel Sicilia. Vozes: Antonio Banderas, Freddie Highmore, James Cosmo, Michael Culkin, Charles Dance, Tamsin Egerton, Mark Strong, Stephen Hughes, Alfred Molina, David Walliams, Julie Waters, Saoirse Ronan. Duração: 126 min.

Nos tempos modernos é extremamente perigosa a mínima sugestão ou incitação de justiça com as próprias mãos. Não só pelos recentes casos no Brasil, mas pela situação mundial. E é exatamente por esse caminho problemático que a animação espanhola Justin e a Espada da Coragem trilha. Aponta para a crise econômica que a Espanha ainda vive, mas com uma camada de desilusão social que pode arrancar uma reação equivocada, principalmente se tratando de algo para crianças. A animação produzida por Antonio Banderas aponta para os dois extremos de política e guerra, mas passa a tratar essa última como se pela falta dela estamos no mundo em que vivemos. Desde uma criança não entendendo a burocracia da vacinação de um animal, passando por símbolos representativos como a espada que não está mais lá, até chegar aos diálogos que indicam que leis e direitos são um erro. Afinal, a burocracia, os ricos, a sua falta de empatia com o povo e a sucessão de erros nas leis econômicas trouxeram a desunião europeia. “O povo precisa dos heróis. Eles os querem de volta!”, afirma determinado personagem.

Claro que a animação não foge do senso comum ou dos estereótipos do gênero, pois há a princesa mimada, o galanteador, o pai que não entende o filho (e o clímax será baseado nessa desavença), o jovem sonhador que enfrentará obstáculos para se tornar especial e mentores devotos que o guiarão na jornada. O treinamento desajeitado do protagonista, sob esta ótica, não foge muito disso. Mas é a mensagem que assusta mais, como o momento em que uma avó diz para criança que talvez a lei esteja errada. E mesmo que trate de soar contraditório em momentos, talvez para não perder o apelo, como quando Justin sugere que não há honra pela força, o filme já afunda em sua maneira anacrônica de tratar os problemas ou de suas próprias piadas, envolvendo nomes “engraçadinhos”, por exemplo. Até pode ser que as intenções do longa-metragem não sejam as erradas, mas fica difícil defendê-lo com o resultado mostrado.

* Escrita originalmente para o Diário Catarinense




10 de março de 2014

Nebraska

Idem, EUA, 2013. Direção: Alexander Payne. Roteiro: Bob Nelson. Elenco: Bruce Dern, Will Forte, June Squibb, Bob Odenkirk, Stacy Keach, Mary Louise Wilson, Rance Howard, Tim Driscoll, Devin Ratray. Duração: 115 min.

Pode parecer clichê, e é, mas, de alguma forma, sempre estamos buscando algo para preencher o vazio que possuímos em nossas vidas. Ansiando por algo que atice nossa curiosidade: um relacionamento, uma novidade, uma nova paixão ou, neste caso, um bilhete premiado. Não à toa, Woody Grant nos é apresentado caminhando em nossa direção, como se fugisse de tudo aquilo que o espera em sua tediosa rotina e viesse até nós buscar um direcionamento, mesmo que não seja propriamente isso. Ele sabe aonde quer ir: Nebraska, onde uma placa ressalta quando chegamos à cidade – “the good life”. A promessa de felicidade para alguém que tanto a procura, ainda que não saiba disso.

E esse é o grande segredo da excelência de Alexander Payne: tramas simples que geram grandes autoavaliações. Há vida e sensibilidade em suas obras – seja ao redor de uma viagem, um novo relacionamento, uma descoberta ou uma nova etapa. São personagens que sempre passam por alguma transformação. Entretanto, em Nebraska, diferente de Os Descendentes, ele não é permissivo com a narrativa ou apenas se guia pela química dos protagonistas, é complementador ao roteiro de Nelson. Acrescenta, embora seja bastante paciente. Do mesmo modo, Payne acredita no que está mostrando, o que volta a combinar o seu conhecido cinismo pessimista com uma sensibilidade envolvente: o que Woody faria com um milhão? Compraria uma nova caminhonete. O diretor aproveita o cansaço e rancor de seu protagonista para expor o texto de Nelson da forma mais interessante possível, ao mesmo tempo em que os diálogos funcionam (a sequência em Rushmore é ótima), Payne nunca se apressa, deixa os personagens chegarem ao cômodo e traz substância para cada situação.

Nesta perspectiva, a visita de Woody e David aos familiares que moram em Hawthorne não serve apenas para criar desavenças entre os personagens, mas como um retrato pertinente ao que seria a vida de Woody se vivesse nas redondezas ou estivesse em casa. O irmão é símbolo do que ele está fugindo: a vida melancólica e tediosa, onde nada de grande coisa acontece e as pontuais conversas sobre a nova crise econômica aparecem durante um círculo ao redor da televisão. Não que a economia importe para aquelas pessoas, pois elas apenas se limitam a falar sobre carros, velocidade e cervejas. O anúncio de um milionário na cidadezinha, portanto, muda completamente o cotidiano. E se o design de produção de Dennis Washington é comum (Hawthorne é eficientemente isolada, mas lembra uma grande maquete) e a montagem faz uso de sobreposição a todo instante, a trilha de Mark Orton emprega muitíssimo bem violão e violinos para passar a melancolia de toda aquela etapa. Da mesma forma, a fotografia de Phedon Papamichael, colaborador costumaz de Payne, é perfeita ao exibir traços melancólicos envolvendo paisagens belas – como se o mais lindo da vida também possuísse ares inalcançáveis e tristonhos.

Mantendo o seu olhar simples, exausto e, ao mesmo tempo, tristonho por ser inerte ao que a vida faz com ele, Bruce Dern é a alma de Nebraska. Sensível e bem intencionado, mas ao mesmo tempo complexamente desamoroso, o ator ostenta um timing invejável (“alguns deles estão mortos!”), além de ter uma força dramática impressionante em querer deixar a sua marca em um mundo que já o vê como um zumbi. Já June Squibb tem a cena do filme em sua série de provocações no cemitério, enquanto desenterra o passado dos Grants.

Payne, por fim, é o oposto da antipatia dos filmes de Noah Baumbach. Em Nebraska, a vida sem cor de Woody é o foco de suas intenções. Criando uma coesão interessante, quando o retorno à velha vida se faz necessário, o diretor termina sua nova obra deixando a sincera mensagem: a vida é assim – espere o seu milhão, mas fique contente com seu chapéu.  


4 de março de 2014

Um Conto do Destino

Winter's Tale, EUA, 2014. Direção: Akiva Goldsman. Roteiro: Akiva Goldsman, baseado no livro de Mark Helprin. Elenco: Colin Farrell, Russell Crowe, Jessica Brown Findlay, William Hurt, Jennifer Connelly, Ripley Sobo, Will Smith. Duração: 118 min.

Um Conto do Destino é basicamente como se a bíblia fosse escrita pelo escritor Nicholas Sparks. Adotando uma postura extremamente religiosa e romances que geram milagres, o primeiro trabalho de direção do roteirista Akiva Goldsman (Uma Mente Brilhante e A Luta pela Esperança) versa com um caminho que expõe a falta de costume de seu realizador. O filme, afinal, é o resultado de várias inspirações e referências de outras obras. Há instantes em que a temática espírita surge na forma como o destino é abordado, lembrando muito o ótimo A Viagem; noutro, o romance impossível entre Peter Lake (Colin Farrell) e Beverly Penn (Jessica Findlay) recorda um trabalho específico do diretor Adam Shankman; além de Akiva ensaiar o otimismo invariável do magnífico Richard Curtis, com diálogos carregados de sentimentalismo e adoração pela vida. Não o bastante, emula o olhar bíblico sobre bondade e malícia, chegando a mostrar Lúcifer junto com seu comparsa Pearly Soames – Russell Crowe e Will Smith, ambos constrangedores. Nesta perspectiva, a maneira como Lake retorna em 2014, muito similar com a imagem católica de Jesus Cristo, não é à toa. O maior problema acaba sendo a falta de domínio sobre os inúmeros temas que quer resgatar. A própria magia e milagres que aparecem aqui e ali são colocados abruptamente: um cavalo branco voador é o maior exemplo.

Akiva Goldsman brinca com flares, estimula os ares vilanescos de Pearly, mostra uma batalha entre anjos e demônios, mas sem muita explicação, investe na história do ladrão que rouba o coração de uma moça e aposta em sua mensagem. Mas se complica em como fará isso. Trazer uma falsa realidade para o tom mitológico o complica ainda mais na missão. Lúcifer lendo “Uma Breve História do Tempo”, de Stephen Hawking, por exemplo, somente denuncia a tentativa de um gracejo que não funciona. Do mesmo modo, os sintomas de tuberculose nunca são mostrados. E Beverly chega a afirmar que ter essa doença é uma benção, o que soa excessivamente incoerente. Mas há momentos belos: a foto de Peter com Beverly observada em 2014 ou uma constelação que fica no teto de uma estação, onde Peter mora e cria um contraste muito interessante sobre ele estar no caminho para se tornar uma estrela. É um filme que intenta produzir a mesma sensação de algum trabalho de Frank Capra ou Richard Curtis, mas é sempre melhor assistir ao original.

* Escrita originalmente para o Diário Catarinense

2 de março de 2014

RoboCop

Idem, EUA, 2014. Direção: José Padilha. Roteiro: Joshua Zetumer, baseado no roteiro de 1987 escrito por Edward Neumeier e Michael Miner. Elenco: Joel Kinnaman, Gary Oldman, Michael Keaton, Abbie Cornish, Jackie Earle Haley, Michael K. Williams, Jennifer Ehle, Jay Baruchel, Zach Grenier, Samuel L. Jackson. Duração: 117 min.

Ainda que não seja um filme cínico ou de difícil entendimento, os dois Tropas de Elite foram inúmeras vezes tratados de forma errônea: como se fossem exaltações da violência policial ocorrida diariamente no país. Exatamente o efeito contrário do que propõe a obra inteligentíssima de Padilha, que trata a violência policial com uma realidade absurda e resume o pensamento reacionário de uma sociedade que clama por justiça pelas próprias mãos. Não à toa, o “herói nacional” que virou o Capitão Nascimento depois do primeiro filme gerou tanta preocupação, que um segundo longa foi necessário para deixar mais ou menos claro que aquele personagem não possuía nada de heroico. Muito menos a polícia militar. Da mesma forma, os direitos humanos e o poder midiático tendencioso, decisivo e influente de alguns veículos também davam às caras para mostrar todo o conjunto que cercava um sistema extremamente impiedoso socialmente e precário, muito precário.

RoboCop segue a mesma lógica que os dois Tropas de Elite e assume, além disso, o teor político-social do maravilhoso documentário Ônibus 174. Há a mídia tendenciosa de Pat Novak, que faz o mesmo papel que já foi de André Mattos no segundo Tropa, a sociedade caótica e criminalizada que poderia ser qualquer cidade do mundo, além da ânsia popular pelo uso das forças policiais, que sempre surge assustador e perigoso. O diretor evoca esse ar político desde o princípio, discorrendo sobre desarmamento, o uso do poder militar americano nos países muçulmanos – numa sequência brilhante, em que os homens-bombas adquirem uma nova filosofia e mudam sua mensagem: o suicídio passa a ser uma autodefesa –, além de colocar em xeque o uso dos drones e a própria “recém-descoberta” espionagem utilizada pelo governo dos EUA. E sempre de forma sutil: muitas vezes em diálogos ou, na maioria delas, em imagens – a cena em que RoboCop persegue um dos mandantes de sua morte e começa a acessar dados da Justiça americana, procurando, inclusive, por celulares, e-mails, câmeras e rastreadores é um belíssimo exemplo.

Numa época intensa como a que vivemos, além do mais, Padilha escancara o uso dos instrumentos midiáticos e publicitários para a legalização da violência – sempre muitíssimo bem executadas nos programas de Pat Novak (Samuel L. Jackson, ótimo!), que não foge muito de figuras da nossa própria televisão, como Sheherazade, Wagner Montes, Datena, entre outros, e na influência popular perante o congresso. Como não perceber, portanto, o apelo que robôs “incorruptíveis” e sem sentimentos poderiam possuir numa sociedade como a nossa?! E compreender o quão isso, igualmente, pode ser problemático. A figura de uma criança portando uma faca e sendo metralhada por um desses “avanços tecnológicos” num noticiário é o indicativo mais assustador. O que ganha ainda mais peso dramático quando o governo pede para as imagens serem tiradas imediatamente do ar. O famoso controle de danos.


Existem inúmeras diferenças entre o original e remake. Não há como utilizar a sanguinolência desenfreada do primeiro, muito menos a natureza de Murphy, assim sendo, Padilha cursa um caminho alternativo. O personagem de Keaton, nesta perspectiva, é eficientemente megalomaníaco, cínico, caprichoso e autodestrutivo, como os empresários – na visão do diretor; muito diferente do ingênuo e promissor rapaz que não sabe onde está se metendo no original. Sob a mesma ótica, a morte de Murphy não pode ser igual. A corrupção policial conduz o personagem para outra abordagem – além disso, a troca de figurino cabe na trama e ocasiona uma mudança interessantíssima para o clímax final: a personalidade final de Murphy.

Entretanto, o filme não é só uma façanha em seu roteiro, mas na direção precisa de Padilha, que dá razão para a existência daquele mundo. Não só na forma como aproxima a câmera durante os monólogos, nunca a deixando parada, como também nos pontuais planos plongées: usados, principalmente, para diagnosticar alguma ação final envolvendo um personagem – analise o segundo em que o diretor se afasta lentamente do parceiro de Murphy, o qual está perto da morte, como se a alma daquele estivesse deixando o corpo. Da mesma forma, ele é certeiro na forma como nos aponta uma intimidade com o protagonista: basta notar quando, para nos dar essa sensação de proximidade, Padilha nos aproxima do local em que ele dorme apenas na segunda vez que o vemos, após sabermos que ele está de volta e pronto para vingar sua morte. Como se não fosse o bastante, o brasileiro é dono de uma sequência fantástica, ao utilizar um travelling circular para fragmentar sonhos e realidades no despertar de RoboCop – um trabalho tão emocional e belíssimo que seria injusto não figurar nas listas de melhores momentos do cinema de 2014.

Dúbio como o personagem de Oldman, que está numa atuação envolvente e excepcional, Padilha faz um dos melhores sci-fis dos últimos anos, que só não irá adquirir essa alcunha por boa parte da crítica cinematográfica por questões de preferência e por não possuir o charme de “filme original”. Embora demasiadamente falho nas sequências de ação (já que o costumaz corte rápido é trocado por algo tão torturante quanto, a instável câmera na mão) e no convencional terceiro ato, o cineasta convence pela mensagem e por trazer um RoboCop que, ainda que esteja num retorno limitado, empolga.