28 de fevereiro de 2014

Caçadores de Obras-Primas

The Monuments Men, EUA/Alemanha, 2014. Direção: George Clooney. Roteiro: George Clooney e Grant Heslov, baseado no livro de Robert M Eisel e Bret Witter. Elenco: George Clooney, Matt Damon, Bill Murray, John Goodman, Cate Blanchett, Jean Dujardin, Bob Balaban, Hugh Bonneville. Duração: 118 min.

Há um filme muito bom em Caçadores de Obras-Primas, nova obra do talentosíssimo George Clooney, mas que sofre demasiadamente por um problema significativo: a sua pressa. Não há profundidade em seus personagens, qualquer tentativa de emoção é sabotada pela montagem e o filme é classicista demais. Por outro lado, mais uma vez, a visão política pontual de Clooney e seu tato para a direção ajudam a erguer uma narrativa que parecia completamente perdida desde o seu primeiro ato - fazendo com que embora um filme falho, Caçadores de Obras-Primas seja bastante interessante.

Escrito por George Clooney e, seu parceiro habitual, Grant Heslov, a história acontece durante a segunda guerra mundial, quando, com o declínio de Hitler, especialistas que se autointitulam The Monuments Men se organizam para reencontrar obras de artes roubadas pelos nazistas durante a guerra. George Stout (Clooney) é um oficial americano que lidera a equipe formada por outras doze pessoas.

Tentando emular o clima de M.A.S.H., Clooney procura fazer algo que ainda não havia feito em sua carreira como diretor: experimentar. Há pouquíssimo do estilo alarmante de suas obras, ainda que esteja lá. O diretor prefere trocar o seu pensamento de vanguarda por uma estrutura hollywoodiana clássica – e basta observar a apresentação de cada personagem para verificar esse ponto de vista. Além disso, almejando um tom de comédia para a sua “aventura”, Clooney aposta sempre no timing de seus atores para criar piadas com a segunda guerra: logo, “por isso que não bombardearam Paris”, “o ditador favorito de todos”, “é torcer para que não matem Hitler” ou “Por que você pisou numa mina?”, só são situações engraçadas pela natureza cômica dos atores. Aliás, isto também afeta a estrutura da obra: porque os atores são conhecidos, mas os personagens, não. Falta profundidade, neste quesito. Do mesmo modo, a trilha sonora de Desplat busca também, explorando uma faceta mais antiga, incluindo assovios, destacar o clima descompromissado do filme, porém, sem muito sucesso. Pelo contrário, numa tentativa desastrada de simular John Williams em instantes, Desplat acaba aparecendo mais que deveria.

Por outro lado, se o senso de humor do filme funciona de vez em quando (o cuspe no copo, a piada com Michelangelo, o personagem de Dujardin oferecendo um cigarro para um cavalo), Clooney encontra substância nas cenas mais dramáticas, que é sua principal qualidade. O diretor expõe com talento, por exemplo, a divisão num bar entre mulheres e homens na década de 40 de forma sutil e interessante: somente deslocando o ângulo da câmera brevemente – as mulheres do lado esquerdo, os homens no direito. Da mesma forma, não só quadros de arte são vistos atrás da primeira reunião entre os dois fundadores dos Monuments Men, como a fusão entre a rua e a foto da Santa Ceia demonstra certeiramente o que veremos a seguir.

Ao mesmo tempo, a passagem por uma maquete, as cinzas da guerra quando observamos um Picasso sendo queimado e a tensão que ocorre durante um jantar com um ex-soldado alemão são excepcionais. E o mesmo se pode afirmar das cenas mais fortes de Clooney, quando este encontra a sua zona de conforto: o galpão com fragmentos das vidas de judeus, a extração de dente num açougue, crianças saudando Hitler, o ouro sendo encontrado por acaso (como sempre foi na história), os dentes de ouro localizados, uma criança atirando contra os oficiais, um “XX JU” visto numa parede de um apartamento, entre outros. Aos poucos, a comédia vai sendo reduzida, já que não há mais graça.

Todavia, é uma pena que as boas ideias e as cenas mais dramáticas sejam tão prejudicadas pela pressa. A cena em que um toca-discos reproduz Have Yourself a Merry Little Christmas num acampamento é uma das mais bonitas, mas menos intimistas do longa. Sem se esquecer de uma narração em off que dá as caras no final da narrativa sem grandes significados.

Caçadores de Obras-Primas não é uma obra brilhante, mas tampouco um fracasso de um grande diretor. É uma tentativa mal sucedida de Clooney em experimentar coisas novas, de percorrer novos caminhos e se permitir desvendar o que funciona e o que não funciona na visão política que possui. E é bom que tenha surgido agora, pois dificilmente o veremos errar novamente. 


26 de fevereiro de 2014

Clube de Compras Dallas

Dallas Buyers Club, EUA, 2013. Direção: Jean-Marc Vallée. Roteiro: Craig Borten e Melisa Wallack. Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Denis O’Hare, Steve Zahn, Michael O’Neil, Dallas Roberts, J.D. Evermore. Duração: 117 min.

Clube de Compras Dallas não é o primeiro filme a abordar os perigos que uma sociedade extremamente homofóbica ocasiona não só na estupidez com que algumas pessoas se acham melhores que outras (ou mais naturais), mas também na limitação de conhecimento médico. Numa época não tão longínqua assim, afinal, nem médicos sabiam explicar a origem da temível AIDS e o que mais se falava era que a praga homossexual havia finalmente dado às caras. A peste negra do século XX. Mas, fechando com “chave de ouro” a analogia, a extensão das duas doenças acabou sendo similar: se na época do feudalismo, os padres, que colocavam a culpa nos descrentes, acabaram tendo a mesma doença; nos tempos atuais, os heterossexuais, no auge de seu desconhecimento e seu preconceito, insistiam em taxar a AIDS como a “doença gay”, antes de perceber que também estavam suscetíveis ao problema.

É, portanto, triste e assustador quando Ron Woodroof recebe a derradeira notícia que é soro positivo e possui poucos dias de vida. A natureza da cena é forte em princípio pelo descaso como seu personagem trata essa indicação médica, como se fosse um completo absurdo e engano. Uma reação que se torna ainda pior quando descobre, após pesquisas, que a doença não é como ele pensava ser – culminando num grito extremo e desesperado que exprime um caráter comovente. A partir dali, enfim, a vida não é mais como Ron achava que era. O mundo não se restringe a vida desregrada que vivia.

Não à toa, para simbolizar uma masculinidade quase que troglodita, o diretor Jean-Marc Vallée inicia o longa-metragem com o personagem transando com duas mulheres durante uma tourada. Todavia, isso acaba sinalizando exatamente o contrário do esperado, representando apenas o auge do estereótipo e uma maneira que os roteiristas encontraram de dar ainda mais choque para a inevitável mudança de personalidade. Da mesma forma, os dois evitam em tocar tanto no assunto ilegalidade, a tratam sempre superficialmente, apressam a trama e como o negócio se expande, além de focalizar quase que exclusivamente a relação entre Ron e a “nova vida” que embarcou. Entre aspas, pois as mudanças são escassas e o personagem continua sendo o mesmo homofóbico, arrogante e malandro do começo do filme – algo que, curiosamente, serve perfeitamente para a trama.

Claro que isso é sustentado por uma atuação brilhante de Matthew McConaughey, que é dono de uma das maiores ascensões dos últimos anos. Dono de um timing certeiro (“Aproveitem a vista!”) e de uma impulsividade crescente, o ator compõe alguém bastante ambíguo, apesar da visão estereotipada do texano preconceituoso exposta pelo roteiro. Ele nunca esconde, por exemplo, que convive com Rayon por negócios, mas passa a se “acostumar” com a presença do amigo. Sua fúria no hospital é justamente por não entender o que sente, se a perda de um sócio, alguém com quem passou a ter uma rotina ou um amigo de verdade. E essa reflexão só é vista na obra pela transformação que McConaughey, muito mais que física, oferece ao personagem, escondendo os erros de roteiro – o que, por si só, já garantiria todos os prêmios de cinema do ano. E se Jennifer Garner não consegue ser eficiente ou se tornar menos descartável, Jared Leto tem seu melhor momento na confissão que faz para seu parceiro antes de ir ao hospital: o comovente temor da morte.  

No fim, ainda que as tentativas sejam as de transformar o drama em algo mais novelesco e feito para a TV, como demonstra a estrutura em instantes (vale destacar as elipses deslocadas ou a trama paralela criada para ressaltar os perigos de um remédio), Clube de Compras Dallas se mostra muito mais interessante nos absurdos do que em seu emocional. E seria perfeito se isso fosse sua ambição inicial. 


24 de fevereiro de 2014

Inside Llewyn Davis - Balada de Um Homem Comum

Inside Llewyn Davis, EUA/Inglaterra/França, 2013. Direção: Ethan e Joel Coen. Roteiro: Ethan e Joel Coen. Elenco: Oscar Isaac, Carey Mulligan, Justin Timberlake, Ethan Phillips, John Goodman, Max Casella, Adam Driver, Stark Sands, Jerry Grayson, Garrett Hedlund. Duração: 104 min.

Não há título melhor para a nova obra dos irmãos Coen, Inside Llewyn Davis. Afinal, é a mente e a persona de seu personagem-título que nos importa, assim como o caminho escolhido por ele durante esse curto trajeto – tão quanto sua carreira musical. Como chegamos ao início do longa-metragem? O que nos trouxe até aquele momento de sua vida? Embora não ajam respostas totalmente certas para aquelas perguntas, o convívio com o personagem de Oscar Isaac nos dá uma indicação sobre isso. Davis troca royalties por um cheque independente apenas por necessitar do dinheiro imediatamente, já que abortos não esperam hits musicais.

Sob esta ótica, os Coen filmam com total melancolia o sonho utópico dos artistas: ganhar a vida fazendo o que ama. Desde um escritor até um músico, a questão é a mesma apontada por Davis num café para Jean: não é desejável a vida num subúrbio com filhos, uma conta fixa e ser tratado como capacho de estúdio, mas o poder artístico sobre si mesmo. Não precisar fazer uma música espirituosa sobre um presidente americano, mas algo intimista, uma ode à vida miserável que vive.

Nosso personagem-título é o que compõe – as desilusões, amarguras e instabilidade. Não possui um lugar fixo, dorme em sofás de diferentes pessoas, vive de favores, entre bares e os amigos são escassos. Suas letras denunciam sempre a sua condição. Nada é gratuito. Observe, por exemplo, o instante em que Llewyn Davis canta para seu pai, numa clínica, a música sobre o dia em que sonhavam com os cardumes de peixes – a cena nunca ganharia a força dramática que exibe sem acompanharmos, antes de tudo, o drama de sobrevivência de nosso protagonista e os sonhos que ele não atingiu. O olhar choroso do pai com toda aquela situação e nostalgia é comovente.

Da mesma forma, os Coen utilizam o folk para guiar o público não pelo mundo daquele gênero, apesar de uma participação final ser arrepiante, mas pela música de forma geral e sobre os sonhos e a realidade de tudo aquilo. A temática não é a busca pelo sucesso de Davis, mas por uma condição de vida. Ele acredita em sua arte, como mostra a explosão durante um jantar, e quer ser alguém dentro do ramo. Além disso, a montagem é tão instigante por nos conduzir a cada um desses episódios linearmente que toda a ação se torna ainda mais brilhante: Davis está tentando se reencontrar depois da perda do parceiro, acredita em sua música, um caso que termina em gravidez lhe tira mais uma vez de sua expectativa musical, o seu selo não lhe dá a mínima, não há mais nada que lhe segure na cidade, ele vai para Chicago, é recusado na chance de sua vida, volta para a cidade, decide trabalhar no porto, ganhar a vida, está desiludido, mas tem que cantar novamente para cobrir suas dívidas com o sindicato. Tudo está interligado, sem que esteja explícito. A profundidade aparece na simplicidade da trama.

Todavia, como não poderia deixar de ser, Inside Llewyn Davis é o filme de um ator. Se Carey Mulligan se restringe a gritar obscenidades para o protagonista e Timberlake a ser o bom moço, Oscar Isaac é sem dúvidas o personagem mais complexo do longa-metragem. Compondo alguém que parece ter saído de um livro de Kerouac, o ator é intenso em retratar a queda de sua expectativa profissional até chegar finalmente no momento mais marcante de sua performance: a resposta que dá quando um empresário diz que o reencontro com o seu antigo (e falecido) parceiro era uma grande ideia – indicando um possível pensamento suicida temeroso. John Goodman, por sua vez, faz a sua melhor atuação em anos interpretando um estranho viciado em heroína. A sequência passada no carro é possivelmente a melhor do filme.

Sempre surpreendendo por suas escolhas e pela dosagem certeira de humor, Inside Llewyn Davis termina sendo mais um acerto numa carreira de poucos erros dos irmãos Coen. E por mais que seja tão difícil para nós quanto para o personagem-título dar um adeus para aquela vida, não poderia existir outro final.   


18 de fevereiro de 2014

Ela

Her, EUA, 2013. Direção: Spike Jonze. Roteiro: Spike Jonze. Elenco: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara, Olivia Wilde, Laura Kai Chen. Duração: 126 min.

Eu descobri minha depressão aos 20 anos. Tomei todo o tipo de remédio que poderia ser diagnosticado, mas foi a escrita que me ajudou a passar pelos piores momentos. Expor meus sentimentos em palavras acabou sendo mais significativo que qualquer fórmula médica. De certa forma, o trabalho de um escritor ou alguém que vive com a escrita sempre indica uma forte camada pessoal. Uma reflexão sobre sua própria existência. Ele dá voz para outras pessoas – existentes ou não –, pode utilizar o seu autoafastamento para criar histórias para os outros, mas, nesse meio tempo, busca se autodescobrir. Encontrar a felicidade que proporciona para outras pessoas.

Theodore, o personagem de Joaquin Phoenix, é uma dessas pessoas. Utiliza os seus próprios sentimentos para fazer com que, em palavras, outras pessoas vivam o que gostaria de estar vivendo ou sentindo: o amor. Um dos exemplos mais bonitos utilizados pelo figurinista Casey Storm para diagnosticar essas emoções, por exemplo, é o contraste entre o vermelho usado pelo protagonista e as roupas mais claras de quem o cerca. O mesmo vermelho intenso dos estofados do trabalho tanto aponta para uma pessoa que vive aquilo sempre quanto para alguém que finge ser outra pessoa o tempo todo, denotando igualmente a sua antissociabilidade. Da mesma forma, a medida que a felicidade vai entrando na vida do rapaz, os tons de suas camisas também mudam: após a conversa com um boneco grosseiro (um dos melhores momentos do longa), é a primeira vez que Theodore utiliza uma camisa branca com um casaco vermelho por cima; noutro momento, ele usa cinza com listras vermelhas; assim por diante.

Além do mais, embora o close constante de Spike Jonze produza uma ideia de intimidade, Theodore consegue ser apenas íntimo com algo tecnológico, que o conhece mais que qualquer outra pessoa, sabe seus sonhos e foi feito para atender as suas necessidades. São tempos palpáveis, afinal. A tecnologia influencia todo o nosso cotidiano: comandos de voz, chats sexuais e, finalmente, os OSs – sistemas operacionais com sentimentos. O auge da tecnologia. O mais importante: uma realidade futura que não está totalmente fora de alcance, pelo contrário; algo que chega a tornar a empatia até um pouco desconfortável. 

Nesta perspectiva, Joaquin Phoenix continua trilhando certeiramente o caminho de personagens destrutivos, complexos e desiludidos que se alinham com sua própria persona pública. Seu Theodore se sente incomodado com os próprios sentimentos, demora em aceitá-los, reflete sobre suas ações e apenas se dá por vencido quando vê que não está louco – outras pessoas também estão vivendo romances com OSs, como aponta Amy (“uma amiga ficou com o OS de outra pessoa!”). Observe, ainda, o momento em que o personagem tem uma conversa com um sistema operacional de um falecido filósofo e o (perfeito) olhar ciumento que denuncia. Já Scarlett Johansson tem a atuação de uma carreira transmitindo todos os seus desejos e frustrações somente pelo tom de voz. Algo tão digno que qualquer premiação relevante a premiaria por seu trabalho. A visão dinâmica entre sociedade e tecnologia é exponencialmente mais brilhante quando é Samantha a entregá-la: desde a sua clemência pelo toque até a sua fuga para algum outro lugar (e o diálogo “Às vezes, eu acho que já senti tudo o que precisaria sentir na minha vida!” não representa apenas um deles).

Por fim, Jonze é brilhante em como administra nossas incertezas sobre o amor e as inúmeras camadas de nossos relacionamentos. Como controlar por quem iremos nos apaixonar? Do mesmo modo, como sentimos os nossos relacionamentos passados? Com amargura ou apenas com flashes de uma felicidade superficial que nos permitimos lembrar?! Uma verdade que não podemos esconder no último encontro. Parafraseando o próprio longa-metragem, são pedaços de nós que estão escancarados na tela. De nossas sensações e neuras. E é belíssimo que Theodore perceba que, ao final, a compaixão humana, emulada no clímax, é o que nos resta. Sempre teremos um ao outro. Só falta compreendermos o mesmo. 


16 de fevereiro de 2014

12 Anos de Escravidão

12 Years a Slave, Inglaterra/EUA, 2013. Direção: Steve McQueen. Roteiro: John Ridley, baseado no livro de Solomon Northup. Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Lupita Nyong'o, Sarah Paulson, Paul Dano, Brad Pitt, Andy Dylan, Paul Giamatti, Rob Steinberg, Michael K. Williams, Adepero Oduye, Benedict Cumberbatch. Duração: 134 min.

Conhecido por atmosferas caóticas e por estabelecer protagonistas tão instigantes quanto difíceis – como o líder do IRA, Bobby Sands, ou o viciado em sexo, Brandon –, 12 Anos de Escravidão surge como um dos maiores desafios da carreira do promissor Steve McQueen. Como não deixar que sua história se transforme em lugar comum ou em um melodrama piegas?! Não é um caminho muito fácil, o que a própria narrativa expõe em vários instantes: especificamente, a mise-en-scène de uma briga entre Solomon e Elize é novelesca demais e até mesmo as elipses breves, um abraço coletivo num reencontro e os planos mais curtos das primeiras sequências escancaram uma falta de autoconfiança. Todavia, McQueen não pretende ser sutil na sua abordagem: e o momento em que os escravos e os índios se encontram numa selva reflete bem essa posição. O início do longa-metragem já nos indica os escravos em um plano frontal, que procura nos mostrar não haver razão para esconder os podres da história. Exibe a realidade em sua forma mais crua. As selvas para a comida nas senzalas é outro belo exemplo. Ou o choro após o orgasmo, que denuncia as condições para o prazer.

Embora não seja sutil, 12 Anos de Escravidão não é um filme explicativo, entretanto. É equilibrado. A força de suas cenas nos banhos que apresentam as cicatrizes, a luta pela sobrevivência que evidencia uma falta de lealdade, alguém se calando por meio da tortura e a venda dos escravos são pontos altíssimos da história. Os próprios diálogos acusam a abordagem fria que o diretor se sente confortável: “O meu sentimento é do tamanho de uma moeda”, “Logo esquecerá o filho”. Além disso, McQueen explora diferentes pontos de vistas e facetas do período. Não só o ponto de vista dos escravos, mas das famílias envolvidas. Deixando tudo mais intenso. Solomon açoitando um capataz, por exemplo, é de um significado muito maior que a mesma sequência em Django, de Tarantino. Não que os símbolos óbvios não estejam mais lá a partir do segundo ato, pois estão, como mostra o protagonista vivendo com a corda no pescoço enquanto as crianças brincam e as pessoas levam suas vidas “normalmente”, mas é muito mais honesto. A própria tensão nos encontros de Solomon e Edwin aponta isso – e se há alguma justiça poética no cinema, Michael Fassbender ganhará o seu primeiro Oscar pelo trabalho monstruoso que faz aqui, assim como Chiwetel Ejiofor. Não dá para dizer que 12 Anos de Escravidão é o melhor filme de McQueen, mas certamente é um reconhecimento preciso de uma carreira próspera.

· Crítica originalmente publicada no Diário Catarinense

13 de fevereiro de 2014

Philomena

Idem, Inglaterra/EUA/França, 2013. Direção: Stephen Frears. Roteiro: Steve Coogan e Jeff Pope, baseado no livro de Martin Sixsmith. Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark, Mare Winningham, Barbara Jefford, Peter Hermann, Sean Mahon, Cathy Belton. Duração: 98 min.

De certa forma, Philomena é um filme muito semelhante a sua protagonista: agradável, um pouco incoerente, possui a religião como pano de fundo e carece de intenção. E é fácil imaginar o longa-metragem como algo muito mais profundo do que realmente é, como a organização criminosa guiada por freiras aparentemente ingênuas nos indica e o tráfico de bebês que ocorria inspecionado pela igreja católica. Entretanto, é se movendo basicamente por situações espirituosas sem qualquer vislumbre de dramaticidade que Frears retira o potencial de sua obra. Não só na maneira como a personagem-título age com tudo ao seu redor, como também nos flashbacks deslocadíssimos que aparecem pontualmente na narrativa apenas para rechear uma história que poderia ser contada num curta-metragem.

Porque Philomena não se trata de como paróquias demonizaram suas fiéis por se renderem aos prazeres mundanos como o sexo entre duas pessoas, e é desconcertante a obviedade de uma maça mordida caída no exato momento em que ocorre o “pecado”; trata-se de uma mãe que necessita reencontrar o filho, mas ao mesmo tempo não quer arriscar perder sua fé no que a alimentou quando era uma moça. Ficando, portanto, perfeitamente compreensível que Judi Dench não se arrisque numa construção mais dúbia, pois sua personagem é unilateral em cada segundo (“Eu a perdoo!”). Pelo contrário, a atriz é eficiente em não apresentar qualquer tipo de complexidade moral à sua persona, criando um laço com seu espectador por seu ar quase infantil com o sarcasmo e o que a cerca.

Já Steve Coogan é o exato oposto da britânica. É cínico durante todo o percurso, mas não o impede de refletir sobre suas próprias razões para isto ou o que o faz ser demasiadamente cruel em determinadas situações – observe, por exemplo, a maneira sorrateira como tenta confortar Philomena depois de ter comparado o deus dela com terroristas. O ator consegue, ao mesmo tempo, soar como um contraponto pertinente ao caso da protagonista – principalmente em suas divagações sobre religião, vida e citações (o instante em que cita T. S. Elliot é memorável) –, mas perde a força de sua atuação por não encontrar em sua companheira de cena o que precisava para funcionar melhor: mínimas mudanças comportamentais.

Frears nunca foge da aparência “agradável” de seu filme, o que pode levar a admiração imediata de muitos. Uma pena, pois se há uma coisa que a história que conhecemos não possui é algo de agradável ou de simpático. 


10 de fevereiro de 2014

Uma Aventura LEGO

The Lego Movie, Austrália/EUA/Dinamarca, 2014. Direção: Phil Lord e Christopher Miller. Roteiro: Phil Lord e Christopher Miller, baseados na história escrita em parceria com Dan e Kevin Hageman. Vozes: Will Arnett, Elizabeth Banks, Craig Berry, Alison Brie, David Burrows, Charlie Day, Will Ferrel, Dave Franco, Jonah Hill, Morgan Freeman. Duração: 100 min.

Poucas coisas podem nos decepcionar quando somos crianças. Muitas vezes não temos maturidade o suficiente para perceber quando são mesquinhos conosco, muito menos captar uma ironia mais profunda. Ao mesmo tempo, vivemos mais felizes. Principalmente por se encantar com coisas simples, mas especiais. Inventamos as histórias mais incríveis para “amigos” imaginários no formato que existam – neste caso específico, LEGOs. Assim, é facílimo se identificar com a história concebida pelos diretores Phil Lord e Christopher Miller: a nostalgia e a empatia em doses certeiras. Confiam não só na estrutura narrativa, mas no espectador. Em sua bagagem, sua experiência. Eu e meu pai, por exemplo, construímos uma cidade de Lego na minha infância. Na verdade, ele construiu, eu apenas brincava e inventava as histórias mais surreais. Claro que ele gostava que brincasse com os bonecos, mas de forma controlada, sem mexer demais ou destruir alguma coisa, com regras. Essa não é só a minha infância, mas a do pequeno que controla a cidade de LEGO no filme. É a premissa mais interessante da animação: o nosso relacionamento com nossos pais e o auge da nossa imaginação juvenil.


Claro que Uma Aventura LEGO se compara quase que por princípio a filmes como Detona Ralph e Toy Story, pois nasce como essa aventura sentimental de um menino (“a mão do homem lá de cima”) que enxerga amizade em seus bonecos e de personagens que subvertem as regras pela felicidade própria, mas impressiona mais pela forma como expõe nossos pensamentos. Como calculamos cada aspecto que iremos colocar aqui e ali, além do timing para isto. Não à toa, o garoto usa as coisas que têm na mão: uma arma de chiclete, as placas de avisos que o pai deixava no porão, o som feito pela boca que é brilhantemente utilizado pela edição de som e uma cola que se torna o obstáculo da história (de novo, uma criança não quer ficar parada, a perda do movimento é logicamente algo assustador). Da mesma forma, os personagens se tornam mais conhecidos, a montagem pode acelerar a trama como quiser (o que rende sequências geniais) e as mensagens de autoajuda acabam encontrando significado: afinal, mesmo que a criança seja a mais imaginativa possível, não dá para cobrar profundidade – e isto é muito mais inteligente do que poderíamos supor.  

* Crítica originalmente publicada no site do Diário Catarinense

8 de fevereiro de 2014

Trapaça

American Hustle, EUA, 2013. Direção: David O. Russell. Roteiro: Eric Warren Singer e David O. Russell. Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner, Louis C.K. Duração: 138 min.

Desde o seu retorno ao cinema, David O. Russell foi indicado a cinco Oscars e emplacou pela segunda vez quatro de seus atores nas categorias principais do grande prêmio do cinema norte-americano. Alguns por merecimentos, outros nem tanto. Em Trapaça, saindo um pouco de sua zona habitual de conforto, o diretor parece insistir em uma versão própria de Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese, combinando o clima cínico e a corrupção dos anos 70. 

Não à toa, O. Russell já expõe de início a sua abordagem irônica em meio à atmosfera criminosa que estamos prestes a embarcar: o silêncio inquietante da primeira cena com um personagem literalmente colando o seu cabelo é um belo exemplo. Da mesma forma, o diretor tenta incorporar o cinismo à perspectiva daquele mundo: perceba que o mesmo garoto que é tão querido pelo pai, é sempre deixado de lado, como se a preocupação fosse apenas uma dissimulação; além do grito no banheiro, a dança de Rosalyn ao som de Live and Let Die quando joga o seu marido aos leões, etc. Há algo jazzista e clássico em sua estrutura, mas, ainda assim, espirituoso. Não é algo seco como o cinema scorseseano. É leve. O que ajuda e prejudica, porque – ao mesmo tempo em que tenta criar gags com a máfia, os cassinos, a política e a violência – O. Russell trava nas limitações que autopromoveu. Precisando filmar um drama bobinho travestido de algo profundo e inteligente. O oposto de O Lobo de Wall Street, por exemplo, que gerava graça e desconforto na sua própria profundidade. Não só em estrutura, mas também na forma como seus personagens eram impostos.

O policial de Bradley Cooper, numa atuação constrangedora, é a antítese do agente vivido por Kyle Chandler. Ele é suscetível à ganância. Gosta de quebrar as regras. Apaixona-se por aquela vida de crime. A cena em que ameaça o personagem de Louis C. K. (impagável!) é um dos melhores momentos do longa. Já Amy Adams, que começa prejudicada por um zoom horroroso para destacar seu choque, é excelente na composição dividida e duvidosa de Sydney: o travelling que aponta a mudança de lado dela em uma cena específica é brilhante. E se Jennifer Lawrence se afunda num overacting terrível, sobra para Christian Bale e Jeremy Renner roubarem a cena. O primeiro, principalmente, é o De Niro de O. Russell, ainda que aquele também apareça. A maneira como conduz as palavras e os gestos de vendedor só não são melhores do que a forma teimosa com que ajeita seus óculos – evidenciando um tique tão natural que até quando está sem eles, mexe ligeiramente seu nariz, como se algo o incomodasse. O problema é que Trapaça poderia muito mais que apenas criar piadas com cabelos e narrações múltiplas. Mas preferiu dar jus ao título.

* Crítica escrita originalmente para o Diário Catarinense